A presença dos animais na arte contemporânea
“Um bico a mais, só faz mais feliz, a grande gaiola do meu país”
Por Luana Ferrari
Porque você não adota um pet?
Este é o conselho que eu ouço da maioria avassaladora dos meus amigos sempre que abordo os dilemas da solidão.
Durante o confinamento, abrigos de animais em todo o mundo ficaram vazios. Parece que lidar com a companhia de apenas nós mesmos é um assunto tão complexo que acabamos apelando para amigos de quatro patas quando nos sentimos isolados.
Eu amo bichinhos. Mesmo. Poderia ter vários (se coubessem na minha casa). Mas não tenho e, neste momento, não possuo o mais pálido desejo de tê-los. No entanto, sabe aquela máxima do “não cuspa para cima pois vai cair na sua testa”? Esta sou eu.
Em meio a discursos ponderados sobre como não é um animal de companhia que vai aliviar minha solidão, me vejo trabalhando no Zoológico de Paris e sendo acolhida e apaziguada pela presença dos mais diversos espécimes ditos irracionais que podemos imaginar.
Sou amiga íntima das araras azuis, almoço com as girafas, converso com os flamingos e nunca perco a oportunidade de dar um salve aos divertidos suricatos e seus bebês.
Entre uma zebra e um camaleão, o ambiente “selvagem” que o zoológico proporciona não só me faz sorrir diariamente, como me fez refletir sobre a relação homem/animal de maneira mais profunda.
Qual seria a fonte deste fascínio?
A categoria animais de entretenimento está ligada às mais diversas atividades que vão do esporte à cultura e é evidente que a minha reflexão passaria pelo universo das artes.
Ao contrário de circos e rodeios, o uso de animais na arte contemporânea é uma situação menos conhecida, talvez por apresentar poucas dificuldades e restringir eventuais polêmicas a um nicho.
O zoológico de Paris me remete aos animais vivos na arte pois ambos gravitam em torno do mesmo princípio de exposição e cativeiro. Que seja um animal de companhia ou selvagem, não há galeria (ainda) que permita um leão ou um gatinho vagando livre, leve e solto pelo espaço em meio ao público.
TEMPOS PASSADOS, TEMPOS PRESENTES
Não há dúvida que o animal é representado de forma artística em todo tipo de civilização e nos mais diversos suportes (mosaicos, metal, pedra, pergaminho, etc.). Arriscaria dizer, inclusive, que esta poderia ser uma das origens da arte quando pensamos, por exemplo, na gruta Nerja, na Espanha, recentemente descoberta e datando de 42 mil anos.
A utilização de ícones animais é bastante diversa e varia de acordo com a época e o local, mas, sem dúvida, sua onipresença é fruto do simbolismo que estas imagens projetam abordando o deslumbre e medo que estes provocam no ser humano.
Na arte contemporânea a presença destes tais ícones evoluiu com o surgimento de animais vivos que podem permanecer invisíveis aos olhos do público, que é, por sua vez, contemplado com os resultados da intervenção do animal na criação artística; ou aparecer sozinhos (ou acompanhados do artista) em obras, instalações, ambientes ou performances efêmeras, que duram apenas algumas horas ou o tempo de uma exposição.
O MACACO É UM ARTISTA
Aqui no zoológico, um dos pedaços mais animados é o dos babuínos. Eles são extremamente agitados e barulhentos e, um belo dia, ouvimos pelo rádio um alerta de que uma fêmea tinha caído de um galho e batido a cabeça na pedra. Aparentemente havia muito sangue escorrendo para um riachinho e a tarefa dos agentes do parque era evitar que crianças e adultos mais sensíveis se aproximassem para não ficarem impressionados. Para quem ficou preocupado, já digo logo que o tombo não foi nada de excepcional para o mundo animal e a macaquinha passa muito bem, obrigada.
No entanto, aquela mancha vermelha que se formou contra o fundo cinza claro da pedra em meio aos macacos, me remeteu ao pintor surrealista e zoólogo inglês Desmond Morris que, em 1956, deu um lápis e um papel ao seu chimpanzé, Congo.
Como você pode notar, a sacada do “um macaco poderia ter pintado isso” não é tão original e criativa assim sendo que, ao longo de sua carreira, Congo pintou cerca de 400 quadros e seu estilo foi classificado como “impressionismo abstrato”.
Claro que existe muito ceticismo em torno da produção artística do chimpanzé, mas o questionamento que o seu trabalho levantou chamou a atenção até do Instituto de Arte Contemporânea de Londres que, em 1957, montou uma grande exposição com as obras do artista-primata.
Desmond afirmava que as pinturas do Congo “eram verdadeiramente arte em seu sentido mais puro” e seu prestígio não se perdeu com o tempo. Em 2005, três de seus quadros participaram de um leilão em Bonhams e foram arrematados por um total de 26 mil dólares, vinte vezes mais do que o preço original estimado.
E não para por aí. No ano passado Desmond Morris, o responsável pela descoberta do talento artístico de Congo, decidiu se separar da sua coleção e a Mayor Gallery, em Londres, expôs e colocou a venda 55 obras com preços que iam de 1500 a 6000 libras.
A produção artística de um chimpanzé que tinha entre seus colecionadores Pablo Picasso e Salvador Dalí, levanta o eterno questionamento cosmopolita que gira em torno da arte contemporânea: mas o que é arte, afinal?
“I like America, and America likes me”, de Joseph Beuys
SE EXPONDO COM LOBOS
Os animais selvagens como leão, pantera e lobo estão entre os mais populares de qualquer zoológico e por aqui não é diferente.
Diego e Enrique são uma dupla de lobos ibéricos um tanto tímida, que faz breves aparições para correr vorazmente atrás dos pedaços de frango que lhes são deixados pelos cuidadores. Frequentemente crianças se colam ao vidro da “jaula” entoando “auuuuuuu” como que evocando os animais e esta cena me faz sempre pensar na performance “I like America, and America likes me”, do artista conceitual alemão Joseph Beuys.
Em 1974, Beuys aterrissou em Nova Iorque onde foi recebido por seus assistentes que o envolveram em um grande pedaço de feltro e o enviaram, em uma ambulância, à Galeria René Block, no Soho.
Lá chegando, um coiote vivo estava à espera do artista que, durante três dias, passou 8 horas trancado em uma gaiola de vidro vivendo e se comunicando com o animal.
Durante este período, Beuys tentou fazer contato visual com o coiote repetindo gestos simbólicos como atirar luvas de couro em sua direção ou gesticular loucamente com as mãos e uma bengala.
Ocasionalmente, ele se disfarçava de pastor, envolto em seu feltro com uma espécie de cajado em gancho.
A interação homem/besta foi documentada e sugere que o comportamento do coiote oscilava entre curiosidade e confusão, podendo ser hostil e dócil.
O artista, por sua vez “racional”, seguiu inabalado, sempre insistindo em tentar se conectar com a criatura até os últimos instantes da performance quando ele foi novamente empacotado e devolvido ao aeroporto para retornar à Europa.
O propósito da obra era iniciar um diálogo nacional. Nos anos 70, os Estados Unidos estavam divididos devido ao seu envolvimento na guerra do Vietnam e, particularmente, por ser uma nação cuja maioria branca oprimia as populações indígenas e imigrantes
Em algumas crenças indígenas o poderoso coiote equivale à possibilidade de transformação e por mais que ele pudesse remeter a um predador agressivo, para Beuys, era a representação espiritual dos Estados Unidos.
Segundo o crítico David Levi Strauss, “I like America, and America likes me” busca confrontar esta sociedade e sua eterna “separação entre a inteligência nativa e os valores materialistas e positivistas europeus”.
Beuys se referia a estas performances – que, para ele, eram destinadas a mudar a sociedade para melhor – como “esculturas sociais”, partindo do princípio de que “todo mundo é um artista” com a capacidade de agir e transformar o mundo ao seu redor.
Com o objetivo de fazer a sociedade americana remediar seus males através da comunicação entre suas populações diversas, não podemos deixar de pensar que a homenagem de Beuys a esta antiga divindade animal americana ressalta exatamente como o país era, e ainda é, jovem, e que alguns diálogos difíceis são de extrema importância para curar suas brechas.
Embora as divisões da América do Norte pareçam longe de serem resolvidas e que suas transgressões continuam em igual medida, o coiote segue sendo um símbolo de sua resiliência e, talvez, de seu potencial de transformação.
Saiba mais: Novo documentário sobre Joseph Beuys: o que você deve saber antes de assistir

“O Peixe”, de Jonathas de Andrade, exposto na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, em março de 2019 (Foto: Julia Flamingo)
O MILAGRE DOS PEIXES
Quem quer ver peixe vai ao aquário e não ao zoológico. No entanto, um pequeno aquário com mini arraias, peixes coloridos e até um pequeno tubarão bambu, se esconde na saída da “Serra Tropical” – uma espécie de estufa que simula o clima e vegetação da Amazônia.
Os sons e odores deste cenário tropical tão familiar para mim, me fazem viajar para dentro da obra “O Peixe” (2016), do jovem artista alagoano Jonathas de Andrade: um hibrido entre documentário e ficção que vai além do simples uso de animais na arte. O curta-metragem traz uma reflexão profunda sobre a relação entre o homem e o animal, o predador e a presa no que, em principio, parece ser uma jornada de encantamento que toma um rumo totalmente inesperado.
Neste vídeo em loop um pescador de pele morena, sem camisa, senta-se em uma barca e percorre os manguezais de Alagoas. Em pouco tempo um peixe é capturado. O animal respira fundo e o pescador o envolve em seus braços em um acalanto até sua morte.
A sequência – realizada por diversos pescadores usando técnicas tradicionais, como rede e arpão, na espera pelo tempo necessário para capturar a presa – encena uma espécie de ritual de abraço entre predador e presa, entre a vida e a morte, entre o trabalhador e o fruto do seu trabalho.
O momento em que o homem afirma seu domínio após controlar a presa segurando-a em seus braços é profundamente paradoxal. Os movimentos suaves e gestos tenros dos dez pescadores enfatizam sua intimidade com a morte do peixe, o que pode parecer cruel e desconcertante aos olhos do espectador. O mundo ocidental não está habituado a imagens doces e apaziguadoras em abatedouros e a obra evoca uma tentativa de reconciliar a natureza e o homem revelando uma espécie de respeito e simbiose entre eles.
O abraço fatal e dominador é uma metáfora do fracasso total em limitar a exploração e a normalização da matança para um consumismo ilimitado que gera uma devastação ambiental sem propósito. É o colapso da relação entre homem e natureza em um retorno ao primitivo, ao essencial, às incertezas e à sobrevivência.
Saiba mais: Jonathas de Andrade é um dos artistas mais promissores do mundo
NENHUM ANIMAL FOI FERIDO DURANTE O PROCESSO
A intensidade na respiração do animal dá potência à arte. A força dos seres vivos (sejam eles humanos ou animais) não pode ser comparada a um simples objeto, por mais simbólico que seja.
Quando teorias evolucionistas pretendem que as diferenças entre homem e símios são menores do que imaginamos, ir à uma exposição com obras realizadas por um macaco é uma possibilidade de olharmos para dentro de nós mesmos.
O ritual de pesca documentado por Jonathas de Andrade não poderia ser uma animação. A vida pulsante do peixe e do pescador é o que permite que a arte se reinvente e reinterprete, se transmute e se transforme, reconhecendo que o uso destes animais reais vai além da ação artística, é uma ação literal.
Os animais na arte enaltecem sua capacidade de se envolver com o mundo humano em questões de significado e exploração artística, além de rememorar heranças de colaboração com o mundo natural, que remontam à pré-história.
Quando elevamos os animais a objetos intocáveis, esquecemos sua mortalidade e falibilidade correndo o risco de esquecer também da nossa própria fragilidade.

Não tem nenhum comentário