Como fica a arte urbana se os artistas de rua estão em casa?
As propostas inventivas dos artistas urbanos para criar espaços possíveis de atuação
Por Laura Rago
Se, para alguns artistas, um pouco de reclusão favorece a concentração no processo criativo, essa, talvez, não será a realidade daqueles que têm na rua e na sua dinâmica não só a matéria-prima como também o suporte do próprio trabalho artístico.
O espaço público, onde se desenrola a vida dos moradores da cidade, com suas idas e vindas, é o palco de um tipo de experiência artística que só se consolida com a participação do receptor – seja pela interação, seja pela contemplação.
Os muros, as paredes e as empenas, os postes e os elevados, todos são suportes dinâmicos, inseridos na vida da comunidade. Por outro lado, a arte de rua não se esgota no seu circuito peculiar, pois está em diálogo permanente com o campo artístico como um todo, levando-o a repensar seu papel e seus limites, questão ampla e urgente na contemporaneidade.
Em tempos de distanciamento social, os artistas urbanos voltam-se com mais vigor para esse aspecto reflexivo do seu fazer artístico. Enquanto não podem intervir concretamente no espaço físico da cidade, descobrem formas de impulsionar a sua atividade, sobretudo no que ela tem de conteúdo filosófico e ação política, na imensidão do espaço virtual, convertido em ponto de encontro.
PINTANDO O 7 NO DIGITAL
É unânime: os artistas, por questões óbvias, estão aproveitando esta fase para #ficaremcasa e se dedicar ao trabalho de ateliê, aprimorar sua comunicação no digital, criar técnicas inovadoras e se arriscar em novos suportes. A abstinência da rua tem sido um fator importante para a classe artística de rua e tem ativado, ainda mais, projetos que visam as ações sociais.
O espaço digital virou território de conversas que acabaram por legitimar experiências artísticas capazes de tirar os seguidores da atitude contemplativa. Tornou-se vitrine da arte contemporânea, como um laboratório experimental, estimulando a construção de um olhar atual para revisar o sistema da arte e apresentando novos espaços possíveis de atuação.
O QUE ELAS E ELES ANDAM FAZENDO
A artista Laura Guimarães (@lauguimaraes), conhecida por suas poesias visuais, diz que não está fácil ficar sem a rua –– um dos seus últimos trabalhos foi uma grande empena feita com a artista Simone Siss para o Projeto Tarsila Inspira. Com seus olhos e ouvidos ativados, transitava durante horas pela cidade em busca de inspiração para a construção de seus microrroteiros e de lugares para expô-los. Agora, a rotina de Laura mudou. Ela está se adaptando à nova condição: já começou a adaptar suas histórias aos formatos digitais e vem migrando, aos poucos, para o virtual.
Recentemente, fez uma parceria com os VJs do @projetotemos, onde suas poesias ganharam outras paredes, nas quais ela não estava acostumada a trabalhar. O fator surpresa, comum nas obras de rua, também foi mantido em seu trabalho: uma série digital de microrroteiros pode chegar por WhatsApp a qualquer momento do dia. A ideia inicial era que as pessoas presenteassem umas às outras, mas o projeto deu tão certo que muita gente encomenda para si mesmo.

Kit de água e sabão do Mundano (Foto: Divulgação)

Pimp my Carroça (Foto: Divulgação)
O artivista Mundano (@mundano_sp), até a quarentena, nunca tinha postado uma foto de sua cara ou mesmo um vídeo com câmera frontal, mas agora não teve jeito: pela primeira vez fez um tutorial sobre como criar um kit de água e sabão para os mais vulneráveis. Ativo na ajuda dos catadores de materiais recicláveis, fundou em 2012 o Pimp My Carroça (@pimpmycarroça). Com a ONG criou agora a campanha “renda mínima para os catadores”. Para ajudar, é só clicar no link da bio do instagram do artista, que, tão envolvido nesse projeto, ainda não teve tempo para se dedicar à produção de ateliê. No entanto, em @artesvirais, conta no instagram que criou junto com Pedro Frazão, está exibindo vários trabalhos de diversos artistas produzidos neste contexto histórico. A ideia é ser uma exposição virtual e um acervo que una, num só lugar, artes produzidas no mundo durante este tempo de isolamento social.


Trabalhos da artista Magrela (Foto: Divulgação)
Mag Magrela (@magmagrela) é rueira, mas tem encontrado equilíbrio no caos, uma vez que precisa tanto das ruas como de momentos mais introspectivos. Nesse sentido, o isolamento tem sido útil para focar projetos que estavam no papel e aprender a tocar violão. Magrela também está produzindo uma print que dialoga com questões sobre o direito à moradia, temática usual na sua produção. O trabalho faz parte do projeto Pimp My Carroça.
O carioca Lelo aumentou sua produção no ateliê, aventurando-se em outras técnicas. Tem-se dedicado também, por algumas horas do dia, às redes sociais, que estão servindo para entender a ferramenta como um todo e para conferir um “olhar mais business”, que, segundo ele, é “extremamente necessário neste momento”.

“Refúgio”, de Apolo Torres (Foto: Divulgação)
O coletivo de artistas da galeria Choque Cultural (@choquecultural), em São Paulo, criou uma série de videoaulas para adultos, crianças e adolescentes. Atividades artísticas para crianças entre 3 e 6 anos, de estêncil para adolescentes e de desenho digital estão entre os conteúdos apresentados respectivamente pelos artistas Tec (@tecfase), Daniel Melim (@melim_abc) e Rafael Silveira (@rafael_silveira_art). Ainda é possível ver o processo de fabricação de neons com Alê Jordão (@alejordao_art) e uma aula sobre arte com o novo artista da galeria, Sérgio Adriano H (@sergio_adriano_h). Já o coletivo BijaRi (@_bijari) investiu na série Vocabulários Urbanos, projeto feito para ser apresentado especialmente em mídias sociais, não só aquelas que já conhecemos, como Facebook e Instagram, mas as que podem ser vistas em fachadas e empenas de edifícios.
O artista Apolo Torres (@apolotorres) intensificou sua produção de telas e divide com seus seguidores seu processo de produção com vídeos no IGTV. O paranaense Cadu Mendonça, mais conhecido como Cadumen (@cadumen), adiou seus projetos de murais e paredes para concentrar suas atividades na produção de quadros.
Leia mais: entrevista de Laura Rago com o diretor da Choque Cultural, Baixo Ribeiro

O artista Derlon (Foto: Divulgação)
Para Derlon (@derlon), a residência é o limite da criação do artista. Repensar, replanejar e ajustar projetos, que estavam agendados para este semestre, fazem parte da sua rotina. O artista ocupa seu tempo também estudando e pensando em ideias de trabalhos a serem feitos em suportes menores. “Quando tudo isso acabar acredito que estarei com bastante força, superpreparado e pronto para ganhar as ruas”, afirmou.
Manter-se ativo em tempos de pandemia deve estar na pauta do dia dos artistas, tendo em vista o meio virtual como ponte para estreitar laços com o público e os agentes do mercado da arte.
Perceber os nexos e elos profundos entre a arte e o seu tempo é, sem dúvida, uma importante ferramenta para entender o momento histórico presente, uma vez que joga luz, através da arte contemporânea, sobre os anseios e as necessidades da sociedade. Talvez estejamos diante de uma oportunidade ímpar de reflexão crítica acerca dos caminhos que a humanidade tem escolhido para viver e cabe aos artistas propor modos de responder à situação concreta no mundo.
Leia mais: Grafite é arte?
Não tem nenhum comentário