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Estarão as artistas portuguesas finalmente ganhando reconhecimento no país?

Estarão as artistas portuguesas finalmente ganhando reconhecimento no país?


Por Julia Flamingo

Um dos maiores museus de Portugal, a Fundação Gulbenkian recebe sua grande exposição do ano, “Tudo o que eu quero – Artistas portuguesas de 1900 a 2020”. Um dos maiores museus do mundo, a Tate Britain acaba de inaugurar uma retrospectiva de peso portuguesa Paula Rego. Juntando isso com o fato de que os três artistxs do país que alcançam os valores mais altos no mercado são mulheres, a equação resulta na conclusão de que as artistas mulheres portuguesas são amplamente reconhecidas e remuneradas pelo seu trabalho nacionalmente. Verdade?

Mentira. Assim como em todos os países do mundo, a igualdade de gênero na arte (e fora desse meio) em solo português ainda está longe de ser realidade. O número de artistas mulheres representadas em galerias e museus é menor do que de homens. A média salarial delas também é menor do que a deles – o que também inferioriza o trabalho de curadoras, diretoras de instituições, e outras profissionais da arte. Isso tudo sem nem mencionar a dificuldade de visibilidade de outras pessoas da comunidade LGBTQI+, que diferentemente do que vem acontecendo no Brasil, ainda não é assunto que se discute abertamente. A marginalização da artista em Portugal é ainda maior do que em outros países. Vamos discutir o porquê:

MODELO NU

O ponto de partida da mostra “Tudo o que eu quero” é Aurélia de Souza (1866-1922), a qual muitos consideram uma das maiores pintoras de sempre no país, mas sobre quem pouquíssimo se sabe. Só se ganhou conhecimento sobre sua existência em 2016, 150 anos depois do seu nascimento, quando a historiadora da arte Filipa Lowndes Vicente apresentou sua primeira exposição com autorretratos e pinturas de cenas domésticas. Em Portugal, o fato de que mulheres artistas vem sendo “descobertas” recentemente se deve principalmente ao fato de seus trabalhos não terem sido registrados. É assim: a produção de artistas mulheres existe desde sempre, nós sabemos. Mas se curadorxs não as estudam e não escrevem sobre elas, museus não as expõem e não se produzem catálogos, e veículos de mídia não publicam textos críticos que contextualizam a sua produção, elas continuam trabalhando em uma condição de invisibilidade e em um espaço à parte da instituição.

 

A marginalização da mulher enquanto artista começa na educação. Aurélia de Souza viveu isso na pele, já que quando ela foi estudar em Paris em 1899, a aceitação de estudantes de sexo feminino era grande novidade na França e oficializada dois anos antes (curiosamente, em Portugal, a aprendizagem de mulheres em escolas de arte começou antes, em 1881). Até então, enquanto os homens podiam frequentar a escola de Belas Artes, as mulheres tinham o contato com a arte apenas em casa. É claro que, um grande tabu eram as aulas de modelo nu. Produzir em casa sempre foi um impedimento para a profissionalização de mulheres artistas. Ganhar dinheiro com seu trabalho é algo bem recente.

Autorretrato de Aurélia de Souza, s/d

TRANSGRESSORAS E EXPERIMENTAIS

 

Se durante séculos, elas criaram no espaço doméstico, na segunda metade do século 20, artistas do mundo todo encararam isso como ferramenta poderosa para a sua produção. Muitas incorporaram o espaço da casa no trabalho, começaram a fazer críticas claras ao lugar que ocupavam (fisicamente e na sociedade), e começaram a usar o seu corpo e a performance como protagonista das suas obras (esse foi o mote da exposição “Mulheres Radicais”, sobre a qual fizemos esse vídeo no Bigorna).

 

Este foi também o caso de Helena Almeida, uma das maiores artistas portuguesas que criou uma obra de foto-performance única, transgressora, experimental. Fazendo fotografias dela mesma, Helena Almeida queria literalmente vestir uma tela, ser a pintura, sair das suas fotografias para o espaço, engolir a tinta. O trabalho sofisticado que ela fez entre performance, fotografia e pintura era de auto-representação, descobrimento do corpo, exploração do transdisciplinar. Ela foi a primeira mulher a representar Portugal na Bienal de Veneza de 1982.

“A Casa”, de Helena Almeida, 1979
“Pintura Habitada”, de Helena Almeida, 1975

A ACADEMIA DORMIU NO PONTO

 

Nos Estados Unidos, as historiografias feministas nasceram na década de 1970, lutando pela paridade e reconhecimento das mulheres como produtoras, criadoras e pensadoras, e não como musas inspiradoras. Artistas mulheres estavam lutando pelo protagonismo de escrever a história da arte sob a sua perspectiva, e não mais ser coadjuvantes da narrativa oficinal contada por homens brancos ocidentais. Essa luta aconteceu e ainda acontece em diversos países do mundo (Assista nesse link o vídeo F para Feminista).

 

Em Portugal, a prática artística masculina é privilegiada como em qualquer outro país. Mas, como conta a historiadora Filipa Lowndes Vicente nesse texto, o cenário se agrava porque a academia nunca teve uma posição feminista perante a história da arte. Ela defende que as desigualdades de gênero não foram discutidas por estudiosos e pensadores. Falta uma consciência feminista e vozes questionadoras também na crítica de arte e no jornalismo, o que faz com que todos as implicações ligadas a questões de gênero passem despercebidas e ilesas na produção de conhecimento e no que diz respeito a um debate alargado e consistente como pauta social.

“A Noiva”, de Joana Vasconcelos, 2001-2005
“Marylin”, de Joana Vasconcelos, 2011

EMPREENDEDORAS AINDA SÃO AMEAÇADORAS…

 

Artistas mulheres que ganham muito dinheiro com seus trabalhos sofrem preconceito em dobro. É o caso da Joana Vasconcelos, bombada internacionalmente mas alvo constante de críticas Portugal. Ela está entre os poucos artistxs do mundo que trabalham em uma escala industrial, em ateliês que contratam dezenas de pessoas. Nomes como Olafur Eliasson, Ai Weiwei, Takashi Murakami, Jeff Koons e Damien Hirst funcionam nessa chave (Leia mais sobre o estúdio de Joana Vasconcelos na matéria “Ateliê ou empresa?”).

 

Ela tem um posicionamento bem claro quando o assunto é resgatar e enaltecer sabedorias tradicionais femininas, e contrata artesãs para trabalharem na produção de suas peças. O que é feito manual e localmente passa a integrar trabalhos monumentais em espaços internacionais como o Palácio de Versailles, onde ela foi a primeira mulher a ser convidada para criar uma exposição de arte contemporânea, em 2012.

 

E lá ela foi censurada. Quis levar “A Noiva”, um candelabro de 5 metros de altura feito por milhares de OBs que cairia como uma luva dentro do palácio luxuoso, mas foi barrado nos seus portões. A peça que agora integra a mostra da Gulbenkian, representa a simbologia do vestido branco que muitas noivas ainda querem vestir ou se sentem obrigada a faze-lo, representando um símbolo de pureza. Joana questiona: qual a necessidade de uma mulher contemporânea se apresentar como imaculada? O candelabro também remete às tradições que objetificavam a mulher, quando a noiva intocada “passava” de uma família para outra. É por conta da crítica social que a obra foi recusada.

 

Obras consistentes e questionadoras de Joana Vasconcelos, que na sua grande parte, aludem ao universo feminino, não ganham grande repercussão dentro do cenário artístico em Portugal. Provavelmente porque suas obras “instagramáveis” dão dinheiro.  Hoje, Joana Vasconcelos não é representada por nenhuma galeria portuguesa: ela gerencia o seu próprio negócio.

“Bibliothèque”, de Maria Helena Vieira da Silva

A JOIA DE LISBOA

 

Quando o assunto é valor em dinheiro, Maria Helena Vieira da Silva (1908-2006) está no topo da lista de vendas de artistxs portugueses, já que alcançou os valores mais altos em leilão. Suas pinturas deslubrantes trazem para o bidimensional da tela o espaço e a profundidade e, para isso, ela costumava criar redes quadriculadas que constroem perspectivas. Se interessava em pintar principalmente paisagens arquitetônicas e o ritmo da cidade, em tons que muitas vezes apontavam para as cores claras e azuladas de Lisboa.

 

Ela fez a sua vida e carreira em Paris, assim como muitas tantas artistas portuguesas que construíam seus percursos e ganharam reconhecimento antes fora do país e depois nacionalmente. Participou da primeira vez que Portugal teve representação na Bienal de Veneza, em 1950 (55 anos depois de a Bienal existir). Hoje, sua obra e do inseparável marido e artista húngaro Arpad Szenes é mantida pela Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, uma joia no centro de Lisboa, que em 1990 foi construído a seu pedido ao lado da primeira casa onde viveu.

“Noiva”, de Paula Rego
Sem título no5, da série “Aborto”, de Paula Rego

HISTÓRIA (NADA) INFANTIS

 

Aos 86 anos, Paula Rego ganha a maior retrospectiva da sua carreira, na Tate Britain, em Londres, até outubro. Um merecidíssimo reconhecimento na cidade onde construiu sua trajetória. O traço inconfundível da Paula Rego cria narrativas em desenhos, pinturas e gravuras que constantemente fazem críticas políticas e sociais. De longe, as cenas que ela cria mais parecem fábulas, já que ela busca histórias e personagens do universo infantil, mas de perto são assuntos profundos, doloridos ou tabus. Ela tem séries inteiras dedicadas ao aborto, à depressão, à sua primeira relação sexual, à relação doentia que teve seu marido, à desigualdade no tratamento de alunos e alunas nas escolas, à mutilação genital. O museu inteiramente dedicado à sua obra, a Casa das Histórias, em Cascais, é o melhor lugar para conhecer sua produção (Assista ao vídeo abaixo para saber mais).

DA SOMBRA PARA OS HOLOFOTES

 

Lourdes Castro é a artista nonagenária que vive na Ilha da Madeira e tem uma produção poética em que a sombra é o mote principal. Desde os anos 1960, vem criando silhuetas em telas, plexiglas, lençóis e papel, comentando sobre o fugaz e a desmaterialização, e colocando em evidência o que está por trás, escondido, ausente. Ela fez belíssimos teatros de sombras com contornos de personagens e o meticuloso “Grande Herbário de Sombras” em que, a partir da luz do sol, registrou e catalogou a silhueta de cem espécies botânicas que rodeavam a sua casa em Funchal. Ela ganhou inúmeros prêmios e méritos, e participou de importantes exposições internacionais, mas merece em vida uma grande homenagem à altura da sua produção!

PARA LÁ DE ATUAL

 

Por falar em tocar na ferida, Ângela Ferreira (@angela_ferreira_), Grada Kilomba (@grada.kilomba) e Rita GT (@rita.gt) são três artistas de raízes africanas cujos trabalhos seguem a perspectiva do pós-colonialismo, para analisar e criticar a relação de Portugal com as suas ex-colônias, e como essas relações de poder existem até hoje e perpetuam preconceito, marginalização e exploração de diversos grupos. Saiba mais sobre os trabalhos dessas artistas no vídeo P para Pós-colonialismo:

O CAMINHO É LONGO

 

Exposições coletivas e retrospectivas de artistas mulheres são hoje um importante movimento presente em vários países do mundo. Ainda bem: isso responde ao apagamento sistêmico das mulheres da história da arte e nos apresenta aos seus trabalhos de maneira didática e abundante. Ao mesmo tempo, para reescrever essa história, é necessário que exista um discurso crítico acerca do que se expõe. Discursos curatoriais que propõem ser inclusivos não podem correr o risco de perpetuar a separação entre homens e mulheres e enaltecer produções femininas sem dar espaço para sua voz, sem problematizar a opressão que existiu em toda a historia da arte, e sem levantar discussões acerca do momento presente e como isso reflete na sociedade. Em Portugal, para criarmos um impacto a longo prazo, será necessário levantar questionamentos bem mais críticos. A luta está longe de ser ganha.

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