Como falar de arte com crianças?
Arte a gente apre(e)nde também em casa
Por Laura Rago
No edifício Lily, na rua Barão de Tatuí, no bairro de Santa Cecília, eram comuns na casa da minha mãe e do meu pai os encontros, com leituras e debates regados, ao final, a memoráveis músicas do repertório nacional e internacional. Na vitrola, escutávamos desde Tom Jobim, Chico Buarque, Caetano Veloso e João Gilberto até Piazzolla, Paco de Lucia e Maurice Ravel, passando por Baden Powell, Raphael Rabello e Miles Davis.
O prédio, projetado pelo arquiteto milanês Giancarlo Palanti, reunia uma turma de peso. Lá moravam os cineastas Mauricio Berú (argentino) e Sérgio Muniz, a historiadora Rosa Maria Berriel, o sociólogo e cientista político Paulo Barsotti, o sociólogo Ricardo Antunes e a editora e socióloga Maria Dolores Prades, entre vários outros nomes. Minha mãe e meu pai são historiadores e professores doutores desde 1985 na PUC-SP. Meu pai, como meu avô, é também músico.
As portas de casa estavam sempre abertas. Mais do que o nosso lar, o espaço era uma espécie de comunidade; criança, eu transitava livre de um lado para o outro em meio àquelas pessoas que discutiam filosofia, arte, política.
Algumas delas, incluídos meus pais, trabalhavam na antiga Editora Ensaio, que se dedica a publicações e traduções de István Mészáros, Alain-René Lesage, Hegel, Marx, Lukács e Trotsky, entre outros grandes autores.
Antes mesmo de aprender a ler e a escrever, o mundo dos livros e das artes já me fascinava. Cheia de curiosidade, emocionava-me com a intensidade da vida cultural que me cercava, a casa sempre cheia de intelectuais.
E, nesse ambiente, as artes visuais sempre estiveram presentes, ainda que, não tanto em pinturas emolduradas nas paredes. Era nas dezenas de milhares de livros espalhados por todos os cantos de casa, que eu tomava conhecimento desse universo. Passava horas entretida com os recortes de jornais e revistas que meu pai colecionava – hábito que, aliás, ainda hoje ele mantém. As longas conversas em família foram o início de minha formação intelectual.
A arte era ensinada a partir de seu potencial humanista, numa abordagem afetiva e sensorial, que é como as crianças se apropriam dessa forma de conhecimento do mundo. Meu pai, professor de história da arte e humanista convicto, em sua generosidade ímpar, desde cedo me mostrou que havia nesse tipo de manifestação uma função social.
Minha mãe, por outro lado, era quem cumpria a prazerosa tarefa de levar as filhas, eu e minha irmã, às exposições em museus, centros e instituições culturais ou galerias de arte. Era ela quem nos guiava nesses passeios pela história da arte e das culturas. Nossa programação de fim de semana, geralmente, incluía o circuito artístico aos sábados, e a vista aos meus avós paternos, no bairro do Paraíso, aos domingos, quando passávamos o dia ouvindo meu avô tocar suas composições para nós. Sou neta de Antonio Rago, um dos nomes mais importantes do violão no Brasil.
VIVENDO NA PRÁTICA
Desde que me conheço por gente, como se diz, minha mãe nos levava às bienais de São Paulo, ao Masp, ao MAM e ao Sesc Pompeia. É muito fresca a lembrança que tenho desses lugares como dela a nos explicar, com muito entusiasmo, o que estávamos vendo, quem eram os artistas em exibição e o que estava escrito nas legendas das obras.
Às vezes, no caminho, ela já soltava algumas iscas sobre o evento para aguçar ainda mais a nossa curiosidade. E, importante, deixava-nos transitar livremente por aqueles espaços –– sempre com seu olhar cuidadoso e atento, mas sem nunca interferir no nosso ritmo de descoberta.
Hoje, aos 36 anos, eu, com duas meninas curiosas a tiracolo e casada com um artista plástico argentino, tento transmitir a elas o que recebi de meus pais e do ambiente que eles souberam criar. É com essa parte da minha história e das minhas experiências, somadas às do pai delas, cuja vivência artística é particularmente rica, que nossas filhas estão sendo formadas e criadas. A mais velha já sabe que quer ser artista, “igual ao papai”.

DE MÃE PARA FILHAS
Desde bebês, elas me acompanham em algumas visitas às exposições em todos os espaços possíveis e às feiras de arte. Essa atividade é trabalho e lazer na nossa família.
É fato que, recém-nascidas, já prestigiavam o pai em alguma exposição mundo afora. Lá ia eu com as pequenas no canguru ou no carrinho, uma gigantesca mala com tudo o que se pode imaginar (fraldas, chupetas, leite em pó, água, bolacha maisena, fralda de pano, cobertor e muitas trocas) e muita alegria (e uma dose de suor).
Agora que estão um pouquinho maiores, a dinâmica e as estratégias mudaram. Já não levo comigo às exposições aquela mala enorme; por outro lado, não podem faltar na bagagem dois itens essenciais: algumas folhas de papel em branco ou caderno (um para cada uma, para não ter briga) e um estojo com lápis de cor e canetinha (para compartilharem). Onde há lápis, deve haver apontador e borracha, portanto nunca me esqueço deles.
Dessa maneira, consigo tornar o passeio mais interessante e interativo para elas (muitas vezes, ficam cansadas, reclamam e querem ir embora).
Antes de sairmos para o evento, falo um pouco sobre o que iremos ver e sobre o espaço de exibição, um meio de despertar o interesse delas pelos artista e pelos locais. Ao chegar à mostra, proponho um desafio: peço a elas que observem a exposição e depois façam um registro da obra que mais lhes interessou. Isso as mantêm animadas e despertas.
De volta para casa, sempre que possível, faço outro exercício com elas, sobretudo com a minha filha mais velha. Para ampliar o conhecimento do que foi visto, eu lhes apresento vídeos ou imagens sobre a história dos artistas que estavam presentes naquela exposição.
Nessa busca midiática, confesso que não encontrei material didático relevante com linguagem e narrativa infantil. Em comparação com o conteúdo adulto, são pouquíssimos os artistas abordados e as temáticas levantadas, sobretudo a arte contemporânea. Outra questão acerca desse assunto, que vale a menção, é a escassez (e quase inexistência) de vídeos e livros infantis de artistas negros (presentes em todos os capítulos da história da arte), de artistas mulheres (que não viraram produto da indústria cultural) e de artistas LGBTQ+. Não existe um material autêntico, inclusivo e de existência na linguagem artística infantil.
No momento atual, descobrimos que fazer tours virtuais em museus e em galerias pode ser muito divertido. Já fomos ao Egito e até à Casa Azul, de Frida Kahlo. Outra ferramenta que uso muito para despertar nelas o interesse pela arte são os livros disponíveis sobre o tema. Existe uma gama variada de bons títulos com histórias e passatempos para os pequenos experimentarem atividades inspiradas nas obras de arte.

QUAL O PAPEL DA ARTE NA EDUCAÇÃO INFANTIL?
Quando conheci meu marido, o artista plástico Tec (@tecfase), eu ainda trabalhava como repórter de arte e música clássica na Folha de S.Paulo –– bons tempos e saudosas lembranças. Depois que nossa primeira filha nasceu, fui trabalhar como editora-assistente na revista Bamboo, onde atuei por um período relativamente curto. Logo resolvi juntar o útil ao agradável e, em 2015, comecei a trabalhar com o artista-marido. Nosso primeiro trabalho foi a execução do mural no Minhocão –– a pintura deu o start da nossa parceria no campo profissional.
Já admirava e via com muito bons olhos o trabalho belíssimo de arte e educação que Tec desenvolvia havia alguns anos na Argentina, estendendo-se para o Brasil quando ele veio morar em São Paulo no final de 2011. Esse projeto sempre me despertou muito interesse, talvez pela minha formação de historiadora e também educadora (quando saí da faculdade, trabalhei por alguns anos como professora de alunos de seis e sete anos).
Resolvemos, então, ampliar o projeto –– que até hoje é muito orgânico ––, e passei a produzir e conduzir os programas artísticos que chamamos de Projeto Arte e Educação.
Trata-se de uma atividade de desenvolvimento do potencial artístico de crianças de quatro a dez anos de idade, destinado à alunxs da rede pública de ensino e de algumas ONGs em diferentes cidades e países do mundo.
O projeto visa, entre outras coisas, a estimular nas crianças a apreensão sensível do mundo como parte de um processo de autopercepção e de expressão. Realizado no ambiente escolar, Tec, por meio de aportes técnicos e teóricos, convida os pequenos a desenhar livremente sobre folha de papel figuras do seu cotidiano. Com esses trabalhos em mãos, o artista leva para as paredes da escola os desenhos em escala mural. Os laboratórios artísticos ampliam os horizontes das crianças envolvidas, promovendo não só o seu contato com o universo da arte, por vezes negligenciado pela escola, como também a autoestima na escala social e um novo vínculo com os pais. A oficina foi criada para mostrar a arte como um potente canal de transformação e valorização da criatividade infantil.
A ERA CORONAVÍRUS
Impossibilitados de realizar o projeto Arte e Educação, já que as escolas estão fechadas até o momento, resolvemos adaptá-lo às circunstâncias atuais. Desta vez, o suporte da obra coletiva serão as plataformas digitais. Reunimos desenhos de cerca de 500 alunxs, do Infantil I e Infantil II, de quatro EMEIS de São Paulo (Escolas Municipais do Estado de São Paulo) e estamos produzindo um videoclipe animado cuja estreia está prevista para o mês de julho deste ano.
No início do período de distanciamento social, criamos uma série de cinco videoaulas artísticas para entreter pais, mães e filhos. Era um momento muito especial: como preencher o tempo das crianças com atividades recreativas? A etapa pedia ajuda e distrações para os pequenos; ainda não sabíamos como organizar a rotina deles! E por aqui sentimos isso na pele. Esse foi o mote para a produção pensada para crianças de três a seis anos. Algumas noções de formas geométricas e do universo das cores foram introduzidas didaticamente num conjunto de atividades simples, que envolvem manuseio de materiais encontrados em casa. Veja as atividades completas aqui.
SERVIÇÃO :
Abaixo dou dicas de filmes, livros e videoaulas online para crianças. O conteúdo, literalmente testado e aprovado, fez muito sucesso aqui em casa! Passatempos e cursos de história da arte também estão presentes na seleção. Espero que se divirtam!
Pegue a pipoca e venha ver!
Artistas latino-americanos podem ser vistos nestes episódios curtinhos do programa Traçando Arte, produção da TV Rá-Tim-Bum criada em 2009, que traz ao público infantil um pouco da vida e obra de grandes pintores nacionais e internacionais. Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Cândido Portinari, Hélio Oiticica, Di Cavalcanti e Carybé são alguns dos artistas apresentados.
No Quintal da Cultura, programa da TV Cultura, também é possível conhecer a tela “Sanfoneiro”, de Anita Malfatti , a obra “Pescadores”, de Di Cavalcanti e a história de Cândido Portinari , contada a partir de obras do pintor. O artista Jean-Michel Basquiat também foi tema de um dos episódios da atração semanal.
A história da artista mexicana Frida Kahlo pode ser escutada neste podcast e conhecida neste pequeno episódio da série Mulheres Fantásticas. Vale passear virtualmente pelo Museo Frida Kahlo, também conhecido como La Casa Azul, dedicado à vida e à obra da pintora.
Destaque para o documentário do pernambucano ceramista Mestre Vitalino, que rendeu até desenho aqui em casa. Outro filme interessante para ver com toda família é sobre a trajetória artística do escultor sergipano Véio.
Para quem quiser se aventurar em outros idiomas, há boas séries de desenho animado em espanhol e inglês. Los Artistonautas é uma série animada em espanhol para crianças sobre a pintura uruguaia. Em Mundo Zamba, uma série da TV argentina, é possível conhecer a história de Fernando Botero e Diego Rivera, entre outros artistas. Art with Mati & Dada é um programa de desenho animado no Youtube para crianças. Os vídeos em inglês contam a história de grandes nomes da história da arte.
Curso e atividades online de arte para a criançada
Pensando no período de distanciamento social e, em alguns casos, nas férias adiantadas, a plataforma de conteúdo de arte infantil ArtsycoolKids criou videoaulas com oficinas interativas ministrada por artistas, cursos de história da arte e lives no Instagram para a criançada.
O Tate Modern preparou um programa para entreter as crianças, tendo como referências artistas renomados, entre os quais Jackson Pollock. Vale também a visita virtual ao museu britânicodeartemoderna.O #metkids, do MET, é uma plataforma digital do museu de Nova York feita para crianças. Lá você poderá assistir a diversos vídeos e também se inspirar para criar sua própria obra de arte. O Google Arts & Culture criou um site para visitação de museus de arte consagrados no mundo, que vão desde o Museu da Arte de São Paulo, no Brasil, até o Musée d’Orsay, em Paris, na França. No CCBB, de São Paulo, está em cartaz a exposição virtual Egito.
No Museo del Ter, que integra os 27 espaços expositivos do Sistema Territorial de Museus de Ciência e Tecnologia da Cataluña, é possível escutar o canto dos pássaros com um clique nas aves.
Dicas de livros e passatempos
É possível conhecer vários artistas e o universo artístico viajando por meio dos livros. Fiz uma seleção de 15 títulos para a turminha se aproximar do mundo da arte:
Alfabarte
Artes Indígenas
Arte Brasileira para Crianças – 100 Artistas e Atividades para Você Brincar
Cidades e Florestas – os Artistas Viajantes Entre os Seculos XVII e XIX
Cézanne – Uma Introdução à Vida e Obra de Cézanne
Como me Tornei Marc Chagall
Fabriqueta de Ideias
Linéia no Jardim de Monet
Little Artists – Boar Book
Obras de Arte – Jogos e Passatempos
O Menino que Mordeu Picasso
Pintores para Crianças – Coleção Folha de S.Paulo
Tarsila do Amaral
Testemunha Calada – Arte na Pré-História
Tesouros da Arte
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