De frente com a Mona Lisa
Tudo sobre os meus quatro meses trabalhando na exposição do Leonardo da Vinci, no Louvre
Por Luana Ferrari
Em 2019 o mundo comemorou os 500 anos da morte de Leonardo da Vinci (1452-1519). Pintor, escultor, cientista, matemático, inventor, anatomista, arquiteto, botânico, poeta e até mesmo músico, da Vinci foi a personificação do ideal Renascentista – conhecedor de todas as artes e todas as ciências –, marcado pelo racionalismo e que colocava o homem no centro de todas as reflexões não havendo muita distinção entre o ofício da arte e o da engenharia.
Pessoalmente, confesso que não sou muito adepta desta mania de celebrar aniversário de morte, mas em tempos de festas de arromba para pets e bolos lindos de mesversário para bebês, em se tratando de personalidades que mudaram o curso da história, acho que podemos abrir uma exceção e deveríamos comemorar até o primeiro espirro.
Exposições de arte, grandes retrospectivas e documentários sobre Leonardo rodaram o mundo, e depois de quase 10 anos de careira dedicados às artes visuais, eu não poderia ficar de fora desta festa.
Meus anos como assessora de imprensa me permitiram conhecer Mikhail Baryshnikov, ver o neto de Juan Miró semi-sambar com passistas catarinenses e me colocaram junto à Jane Fonda nos bastidores do desfile da L’Oréal Paris em plena Champs-Élysées na Paris Fashion Week. Ainda assim, devo dizer que nada na vida poderia ter me preparado para a experiência de trabalhar em um dos maiores museus do mundo, no centro de uma das exposições mais esperadas dos últimos anos.
Se você tem menos de trinta anos talvez tenha dificuldade em entender a analogia, mas entre outubro de 2019 e fevereiro de 2020 eu me senti como o Bozó, personagem gago do humorista Chico Anysio que usava um enorme crachá em torno do pescoço e preconizava a máxima “eu trabalho na Globo”. Enfim, durante quatro meses eu ostentei o crachá e o orgulho de dizer que eu trabalhava no Louvre.
Foram quatro meses intensos dentro do maior museu de arte do mundo, na maior exposição jamais realizada sobre o artista que fechou com recorde de público (1.1 milhão visitantes) para a instituição. Fruto de 10 anos de trabalho, a retrospectiva contava com cerca de 160 obras, sendo 11 quadros (dos menos de 20 que lhe são atribuídos), e tinha como objetivo mostrar como a pintura estava, para Leonardo, acima de tudo e de que forma seu estudo sobre o universo, chamado “ciência da pintura”, foi o grande instrumento do seu trabalho.
Em uma mostra com tantas demandas e tantos detalhes não há ofício menor. Dos curadores e restauradores aos responsáveis pela limpeza e organização do espaço, era preciso que cada função fosse exercida com excelência para que o todo funcionasse. Neste contexto, minha humilde missão era coordenar a equipe que se encarregava de uma das partes mais requisitadas da exposição: o tête a tête com a Mona Lisa. Uma experiência de realidade virtual que colocava o visitante dentro do cenário da obra mais conhecida de da Vinci, a Gioconda, e deixava conhecedores de arte e senhoras aposentadas deslumbrados.
Pelo nosso pequeno espaço virtual passaram as mais diversas nacionalidades, idades e perfis. Além de amigos e familiares, recebemos celebridades internacionais como Monica Bellucci, Pierce Brosnan e Robert de Niro; a visita ilustre, e altamente coordenada por equipes de segurança que lembravam um filme de ação, do presidente Emmanuel Macron junto com a primeira dama; e, não menos importante, a atriz brasileira Marieta Severo e o diretor de teatro Aderbal Freire Filho.
De maneira global, quando se trata de um lugar tão imenso e com tanta circulação, sua tarefa nunca se limita ao que estava inicialmente previsto. Eu e minha equipe passávamos facilmente de guichê de informações – os sanitários do museu estão situados à direta da pirâmide e a Mona Lisa fica no espaço Denon, a esquerda (leia com voz de aeromoça) – a guias da exposição, tendo que responder questões extremamente precisas sobre a vida e obra de da Vinci. Para ilustrar a diversidade das demandas, um dia uma senhora me perguntou se eu achava que ela deveria comer a banana dela naquele momento, ou mais tarde. Polivalência era fundamental. Conselhos culinários à parte, era importante conhecer cada detalhe do espaço para poder atender da melhor maneira possível às eventuais solicitações.
Começamos com a polêmica “Salvator Mundi”, obra mais cara do mundo arrematada em um leilão em 2017 por 450 milhões de dólares (equivalente a pouco mais de 2,1 bilhões de reais), cujo paradeiro tornou-se um dos maiores mistérios do mundo da arte. Havia rumores de que a pintura, atribuída a da Vinci, faria sua grande aparição na retrospectiva do Louvre e o mistério foi mantido até o dia da abertura. No final, seguimos sem saber por onde anda o salvador do mundo, e o que findou exibido para os visitantes foi uma versão de um dos pupilos do artista.
Seguindo no mote polêmica, houve também o embate diplomático entre França e Itália em relação ao “Homem Vitruviano”. Maior representação do antropocentrismo renascentista, o desenho, que pertence às Galerias da Academia, em Veneza, vai além da reprodução do corpo humano em proporções matemáticas perfeitas e simboliza também o Leonardo anatomista e sua maneira de estudar o homem partindo de uma perspectiva biológica. A Itália defende a tutela do patrimônio histórico, artístico e natural do país e tem por regra não emprestar suas obras maiores. Após longas negociações e a mudança do governo italiano para a legenda centro-esquerdista, o empréstimo foi autorizado, mas por um período limitado (até 17 de dezembro). Se trata de um desenho de pequeno porte e passava despercebido em meio a multidão, obrigando os visitantes a retornarem à sala para procura-lo. O que não impediu que, uma vez que o desenho retornou à Itália, tornou-se fruto da maior frustração do público que não se conformava em ter perdido a estadia da obra na capital francesa.
Tudo em torno deste evento era o maior e mais importante, então, como não poderia deixar de ser, enfrentamos a maior greve de transporte do país, que colocou em evidência a relevância da exposição. O público afrontou, sem hesitar, longas caminhadas de mais de uma hora para chegar ao museu e não perder a oportunidade de apreciar a produção de da Vinci. Eu poderia discorrer sobre como era empolgante ver a motivação dos visitantes face às intempéries, mas prefiro me concentrar no dia 17 de janeiro, quando a greve bloqueou a entrada do Louvre e nós, funcionários, pudemos fazer inveja à Beyonce e Jay Z, passeando sozinhos pelas galerias do museu.
No final, nem greve nem o início do coronavírus ameaçaram o sucesso da exposição que culminou com uma maratona de 81 horas ininterruptas no último final de semana. Tive o privilégio de comandar a equipe que virou as três noites (no turno das 23h às 8h) e vivemos nosso momento Ben Stiller passando a noite no museu, com estoque ilimitado de chá, café e madalenas (ou madeleines), um bolinho francês feito a base de ovo, farinha, manteiga e raspas de limão.
Entre garantir à Brigitte Macron que o capacete de realidade virtual não a deixaria descabelada, as pausas para um café com bolinho nas madrugadas de carnaval em baixo da pirâmide, e uma sessão de fotos para ostentar a Sala des États (onde fica a Mona Lisa) vazia, só consigo compartilhar um milésimo das histórias e momentos infinitos passados entre os muros desta instituição icônica.
O Louvre segue sendo parada obrigatória para qualquer um que aprecie arte nas suas mais diversas formas e, mesmo 500 anos após sua morte, Da Vinci continua a fascinar o mundo. Ele abriu caminho para diversos estudos e algumas de suas invenções tiveram de esperar a evolução da tecnologia por alguns séculos para sua construção. E por falar em evolução tecnológica, aproveito para contar um segredo. O tal cara a cara com a Gioconda virou um aplicativo gratuito. Se você tiver um capacete de realidade virtual em casa, vai ter a mesma experiência que os visitantes da exposição tiveram no Louvre, caso contrário, a animação funciona em 360° no telefone celular e já é uma maneira de fazer uma breve viagem à Paris, mesmo que virtualmente, em tempos de reclusão epidêmica.

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