Direito à cidade e arte: a importância de pensar estes saberes de forma integrada e conjunta
Por Laura Rago
Enquanto invenção humana, a cidade é obra e está intrinsecamente atada às condições materiais e históricas em que foi gerada. Enquanto sistema urbano, é reflexo dos conflitos vividos em sociedade experimentados nos espaços.
A noção de cidade vem sendo re-pensada nos últimos anos, trazendo à tona as contradições no modo como se realiza a vida urbana e a segregação posta pela esfera privada no emaranhado espaço cívico e na convivência comunitária.
Ressignificar os espaços da cidade à luz do momento presente é também uma forma de rever as manifestações artísticas em curso. Mesmo que a apropriação das ruas pela arte e pelos corpos presentes no espaço não seja um debate recente, sobretudo em São Paulo, percebe-se um movimento novo para ativar a reflexão sobre os acontecimentos recentes e acumulação histórica e seus memoriais por meio da cidade.
Na imagem acima, ação da Fumaça Antifascista (@fumaca.antifascista)
Denilson Baniwa, artista e ativista dos direitos indígenas, usou da sua condição de artista para propor uma nova leitura ao “Monumento às Bandeiras” do escultor Victor Brecheret, localizado na região do Parque Ibirapuera, um dos cartões-postais da capital paulistana. O monumento recebeu a intervenção “Brasil Terra Indígena”, que representa o naufrágio de uma embarcação portuguesa.
Trabalhando na mesma perspectiva, a rede de ação Aparelhamento, que se apresenta como um coletivo de arte e ações contra o golpe de Estado em curso no Brasil e pela democracia, criou a ação colaborativa chamada Monumentificação do Ressignificado, cuja ação visa a refazer placas de monumentos da cidade de São Paulo sob a perspectiva de descolonizar nossa história e nossos símbolos, dando um novo significado a monumentos que exaltam líderes coloniais ou escravocratas.
Já o Grupo de Ação, que se considera uma “aliança suprapartidária e anticapitalista de pessoas movidas por uma força sem nome próprio, feita no acaso da necessidade”, instalou crânios gigantes em monumentos da cidade de São Paulo.
Com a ameaça constante à democracia e à liberdade de expressão, reabriu-se o debate sobre o lugar da cidade como plataforma para a arte afirmar sua vitalidade e de seu entorno, revendo sua função atual e questionando as narrativas dos podres poderes que lá se estabelecem. É necessário transformar as assimetrias e indiferenças construídas na cidade, amplamente reforçadas com a pandemia e pelos interesses mesquinhos.
O GRITO DE RESISTÊNCIA E AMPARO
A cidade abriga o espaço físico que, por sua vez, só se torna público, de fato, quando tem valor e uso para todo o mundo. Com efeito, não fosse a Covid-19, esse lugar, onde se desenrola a vida dos cidadãos e cidadãs da cidade, estaria sendo usado de maneira diferente.
O inconformismo da nossa época tem engajado artistas e agentes culturais na tarefa de atuar em outros territórios e de ocupar espaços às suas próprias margens, abrindo diálogos com outros campos do conhecimento e movimentos e organizações sociais.
De certa forma, uma nova mobilização de coletivos e grupos se apresenta como uma estrutura que age contra o avanço do fascismo no Brasil. Percebe-se o surgimento de um movimento genuíno, no qual modelos de atuação e de posição são organicamente desconstruídos, construídos e ressignificados, gerando uma nova forma de ação e de pensar, inserida na comunidade e na geografia urbana.
As urgências do presente exigiram novas maneiras de oposição e uma reavaliação da categoria (enquanto profissionais das artes) e de sua função social. Dessa maneira, a percepção estética também ganha novo significado, dependendo da natureza da ação.
BARRICADAS CONTEMPORÂNEAS
A Fumaça Antifascista é uma ação colaborativa independente que, inspirada nos sinalizadores das torcidas de futebol, se manifesta no espaço físico e virtual. Não precisa ser artista para agir; qualquer pessoa pode fazer a sua fumaça: é só seguir o passo a passo divulgado na conta do Instagram da ação.
Mesmo que fatalmente, a fumaça vermelha e preta –– cores que simbolizam o movimento antifascista –– se desmanche no ar, sob a perspectiva artística, ela proporciona um apelo quase ritualístico ao contexto nacional. Na dinâmica espacial e temporal, a fumaça sobrevive em registros fotográficos e fílmicos, ultrapassando a efemeridade da intervenção, e continua a se espalhar nas redes sociais por meio de hashtags, imagens digitalmente modificadas ou no sistema de compartilhamento e repostagem do conteúdo da ação midiática.
Outra ação que se vale da força das hashtags para se mobilizar contra os regimes autoritários, negacionistas e obscurantistas é a #coleraalegria. Como faixas de protesto e resistência, a ação colaborativa de caráter político é formada por integrantes anônimos, como artistas, curadores e outros cidadãos, e está presente tanto nas redes sociais como nas ruas em manifestações políticas, aparecendo em formato de cartazes, bandeiras e estandartes. As imagens com dizeres “Faltam quantas mortes para o Impeachment”, “Seu silêncio é cúmplice”, “Democracia que horas ela volta?” ou palavras corrompidas pelo discurso autoritário do governo são respostas forjadas a ferro e a fogo pelos acontecimentos políticos e sociais. Seus conteúdos sobressaem às qualidades formais de um trabalho de arte.
Na série #JáBasta!, de No Martins, produzida em 2019, a arquitetura higienista e as questões raciais ganham destaque na produção do artista paulistano, que investiga também a vida do negro na cidade, levantando questões sobre racismo, encarceamento da população negra no Brasil, territorialismo e acesso. A hashtag aparece na borda das pinturas, que posteriormente foi aplicada com silkscreen em bandeiras pretas usadas nas manifestações.
Já os artistas e agentes atuantes de São Paulo do Nós Artivistas fizeram enormes pinturas no asfalto usando hashtags com frases e palavras de impacto e denúncia em avenidas e ruas da cidade.
Ante o descaso do governo no enfrentamento da pandemia e o discurso de Jair Bolsonaro, que vai na contramão do mundo, o fotógrafo Guilherme Licurgo produziu o filme “(R)Existir”, que, segundo relato do artista no Instagram, “é uma homenagem a todos os brasileiros que perderam suas vidas em decorrência da Covid-19 até hoje”. O vídeo, filmado na favela Paraisópolis, é protagonizado pelo bailarino Luiz Fabiano, do Ballet Paraisópolis.
A CIDADE PRECISA DE NÓS
No começo deste ano, fui convidada para fazer a curadoria da exposição virtual do instituto A Cidade Precisa de Você, festival bienal criado por jovens arquitetos e comunicadores, que acontecerá nos dias 11, 12, 13 e 14 de março. Lembro-me de que na mesma semana a prefeitura do Estado de São Paulo resolveu instalar paralelepípedos no viaduto na avenida Salim Farah Maluf com intuito de evitar a presença de moradores de rua, levantando o importante debate sobre a “arquitetura hostil” (estratégia de design urbano que utiliza elementos para guiar ou restringir determinados comportamentos nos espaços públicos).
Instigada com os acontecimentos recentes da cidade e com a minha intensa pesquisa para a mostra do festival, resolvi ampliar a discussão e trazer estas inquietações para o BIGORNA. Na coletiva COMUNA SP, exponho por meio dos trabalhos de Giselle Beiguelman, Denilson Baniwa, Aparelhamento, ALI: Arte Livre Itinerante, Nós Artivistas, Xiloceasa, Jamac, Fumaça Antifascista, Lala Terrível, Eneri e Loba Gi diferentes linguagens e narrativas que reconectam os espaços públicos da cidade, a população, os agentes culturais ativos e suas inúmeras potencialidades.
A terceira edição do evento, cujas ações têm como resultado a conscientização urbana, traz uma programação de debates, oficinas e palestras. Veja aqui a agenda completa. Em tempos de fragilidade de cidadania e exercício de liberdade, expandir a prática artística como ideal político, atribuindo a ela conceitos de direito à cidade, é um possível caminho para fortalecer os sentidos das obras de arte, levantando questões sobre a urbanização e a lógica do mercado hegemônico.
Neste sentido, não podemos deixar de citar escritórios de arquitetura engajados em ampliar as comunicações e o diálogo sobre possibilidades reais de transformação da cidade, como o escritório de arquitetos UNA barbara e valentim. Confira a entrevista com os sócios Fernanda Barbara e Fabio Valentim, que nos contam como a “arquitetura e a arte podem aumentar a potência do trabalho de um e de outro na transformação efetiva da cidade ou do território”.
Na borda de todo esse sistema perverso de exclusão social, que divide a sociedade entre gente e subgente, entre cidadão e subcidadão, há uma força que tenta propor outros vínculos sociais e relacionados com a natureza dos espaços.

Laura Rago
Laura Rago é curadora e crítica de arte graduada em história e pós-graduada em Jornalismo Cultural e em Arte: Crítica e Curadoria. Trabalhou na Folha de S.Paulo como repórter de arte e música erudita, e foi editora-assistente na revista Bamboo. Colaborou para revistas como Vogue, Harper’s Bazaar e títulos da editora Abril. Atualmente, representa no Brasil o artista plástico argentino Tec e trabalha como curadora de projetos especiais na galeria Choque Cultural.
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