Title Image

E como fica a tal da arte “interativa” se está todo mundo em casa?

E como fica a tal da arte “interativa” se está todo mundo em casa?

 

Em um cenário apocalíptico do coronavírus, entenda como a arte relacional nos ajuda a pensar a importância das relações humanas

Você provavelmente conhece a obra da Yayoi Kusama em que, antes de entrar numa sala originalmente branca, cada visitante recebe uma cartela de adesivos de bolinhas coloridas. A brincadeira é colar a cartela inteira em qualquer lugar da sala, tornando aquele espaço mais ou menos parecido com o mundo da artista japonesa, já que ela (diz que) enxerga bolinhas coloridas há décadas em tudo o que vê. A obra é divertida e lúdica, mas em época de coronavírus ela ficaria tão vazia e triste como as ruas de qualquer cidade do mundo (dá até calafrio pensar numa sala cheia de gente encostando em tudo e todos). E como fica a tal da “arte interativa” se está todo mundo em casa?

“Square Depression” (1977/2007), do Bruce Nauman, é uma obra pública em Münster, em um parque,
onde as pessoas se encontram para passar o tempo e andar de skate (Foto: Sofia Saleme)

ARTE INTERATIVA OU RELACIONAL?

 

Coloco “interativa” entre aspas já que, apesar de estar bem na moda, a palavra não é lá muito apropriada. A cultura de criar cenários ou espaços instagramáveis nas exposições é válido e tem um quê de interatividade, já que propicia aos visitantes brincar com ideias relacionadas a elementos da exposição. É uma boa maneira de fazer com que o museu perca a sua aura de um espaço tradicional e ganhe uma pegada descontraída. Agora, quando falamos de obras em que o público é tão importante como os objetos que constituem a obra, quando ela só acontece se um ou mais visitantes experienciarem o trabalho, estamos falando de algo ainda maior do que interatividade. Estamos falando da relação do visitante com a obra e da obra com o espaço e com o mundo. Por isso, faz mais sentido usar a expressão arte “relacional”.

“Not Quite Under_Ground” (2017), de Michael Smith, era uma obra no formato de uma loja de tatuagem, que as pessoas poderiam escolher tatuar seu corpo com desenhos de artistas
do Skulptur Projekte Münster (Foto Sofia Saleme)

ARTE NUM SANDUÍCHE DE PORCO

 

O termo “estética relacional” foi cunhado por Nicolas Bourriaud, nos anos 1990, porque ele notou um movimento grande de artistas produzindo trabalhos em que as obras de arte passaram a promover espaços de convívio entre as pessoas; os artistas passaram a encarar a arte como uma maneira de exaltar a importância de se relacionar. Num mundo digital, numa realidade em que o medo está cada vez mais presente, fazendo com que as pessoas se fecham entre seus iguais (e, agora se fechem dentro das suas próprias casas) as obras da chamada “estética relacional” são um projeto político e social. E assim, trabalhos de arte tomaram forma de jantares em torno de uma sopa tailandesa (Rirkrit Tiravanija), de sanduíches de porco distribuídos embaixo da ponte do Brooklyn (Gordon Matta-Clark), ou de projeções que acontecem a partir da presença de pessoas num mesmo espaço (Olafur Eliasson). É intrínseco à arte unir pessoas e falar sobre a realidade de determinada comunidade, mas a partir dos anos 1990, isso ganhou nome e formato. O que quer dizer que quanto mais as pessoas se afastam, quanto mais fronteiras e barreiras existirem numa sociedade, mais iremos precisar de obras de arte desse tipo.

 

Assista: “A arte social de Olafur Eliasson”

“Untitled (Portrait of Ross in L.A.)”, de Félix Gonzales-Torres, na exposição “Take Me I’m Yours”,
no The Jewish Museum, em Nova York (Foto: Julia Flamingo)

VÍRUS DA ARTE

 

Em tempos do Coronavírus, não é possível falar de obra relacional sem mencionar o artista cubano Félix González-Torres (1957-1996). Quando o vírus da Aids se alastrava nos anos 80 e 90 e, com medo do incerto, as pessoas se afastavam cada vez mais, ele produziu obras como “Untitled (Portrait of Ross in L.A.)”. O trabalho é feito de muitas balas (doces, mesmo) que, de início, totalizam o mesmo peso que o namorado dele, o Ross, pesava antes de contrair Aids. Os visitantes do museu são convidados a pegar as balas. Então, aquela obra vai ficando mais magra, desaparecendo, perdendo força, assim como aconteceu com Ross durante a luta contra a doença. A obra se espalha por aí, como o vírus se espalhava na época. O Ross morreu em 1991 e o Félix também morreu de Aids cinco anos mais tarde. Mas, a ideia ficou: a obra só existe a partir do momento em que pessoas a experienciam. E, mais do que isso, ele transfere para o público a responsabilidade da obra: cada visitante deve escolher se irá pegar as balas; se irá levá-las para casa, guardá-las, ou comê-las; ou – e isso acontece bastante – esperar o outro visitante pegar as balas para perder a vergonha e ter a certeza de que ele pode mesmo levar parte de uma obra consigo.

As obras Pippilotti Rist juntam videoarte com espaços que ela constrói para o público assistir às obras, tirar os sapatos, deitar e se deleitar (Foto: Sofia Saleme)

FICA PARA VOCÊ DECIDIR

 

Aqui vai mais uma crítica às infinitas obras “interativas” de hoje: a grande maioria não deixa para o público escolher, mas tem um propósito e resposta já dados. As bolinhas colantes da Yayoi Kusama, as selfies em cenários divertidos, ou os apps usados em exposições como de Takashi Murakami propõem um único caminho de interação. Na obra de Félix Gonzalez-Torres ou nas “Instruções” da Yoko Ono, em que ela nos propõe desenhar, imaginar ou escrever, a decisão do visitante determina a continuidade da obra e a sua experiência com ela. Mesmo durante a quarentena, obras relacionais podem existir: como conceito, como instrução, como ideia ou num espaço digital. E o período de confinamento irá fazer borbulhar ainda mais o pensamento crítico sobre as relacões nos tempos atuais.

 

Leia mais: entenda o trabalho de Joseph Beuys, que cunhou o termo “escultura-social”

Leia Também

Não tem nenhum comentário

Poste um comentário