Entenda Cildo Meireles em 4 Passos
É comum ouvir que “O trabalho do Cildo é conceitual demais”. Mas, se ele usa sorvete, Coca-Cola e dinheiro nas obras, não parece que ele queira ser tão complicado assim
Entre o final de 2019 e o início de 2020, Cildo Meireles ganhou sua maior individual em São Paulo, intitulada “Entrevendo”. Tendo visitado ou não a exposição no Sesc Pompeia, o texto abaixo te ajuda a entender os quatro pensamentos principais da obra deste que vem percorrendo uma das mais geniais carreiras de um artista brasileiro. E, então, você poderá responder com elegância a quem diz “não entender nada” do seu trabalho:

1 – Circulação
Quando convidado para participar da Documenta de Kassel, na Alemanha, em 2002, Cildo Meireles preferiu vender sorvetes no lugar de apresentar uma obra num museu. Ele espalhou pela cidade carrinhos de picolés que custavam 1 Euro. Quem experimentava, percebia que o gosto era apenas de água e que, à medida em que era consumido, o picolé revelava a frase “Elemento desaparecendo” em um dos lados do palito. Depois de consumido totalmente, o outro lado do palito mostrava a inscrição “Elemento desaparecido”. E desta maneira lúdica e elegante, ele falava sobre a escassez de água! A ideia de fazer circular um pensamento por meio do consumo é do começo da carreira do artista de 71 anos, em 1967, quando o Brasil estava em plena ditadura militar e qualquer meio de circulação era vigiado – menos as garrafas de Coca-Cola retornáveis, claro. Foi aí que Cildo teve a ideia de imprimir nas garrafas frases críticas ao estado ou ensinava o consumidor da Coca a fazer coquetéis Molotov, e colocava as garrafas novamente em circulação. Em outro exemplo de Inserções em circuitos ideológicos, o artista carimbou notas de dinheiro com frases como “Quem matou Herzog?” e as colocou de volta em circulação – assim, as notas passavam de mão em mão e informações na época censuradas, também. É genial: elas não circulavam apenas em ambientes relacionados à arte e ainda questionavam a dinâmica de produção e circulação de bens.

2 – Dinheiro
As garrafas de Coca-Cola podem ser vistas em coleções como a Pinacoteca de São Paulo e a Tate Modern, em Londres, e o Projeto Cédula retorna agora ainda mais contemporâneo, em que notas de 2 reais foram carimbadas com a frase “Quem matou Marielle?”. Isso mesmo: fique atento, que uma delas pode parar em suas mãos. E aí você terá que decidir se vale a pena gastá-la ou se, por ser uma obra de arte, ela tem um valor maior do que apenas os 2 reais inscritos na nota. O dinheiro também é parte importante da obra Missão/Missões (Como construir catedrais), que ocupou grande área da sala de convivência do Sesc Pompeia. É uma piscina de moedas de 1 centavo espalhadas pelo chão. No teto, estão centenas de ossos de bois. Entre eles, está uma coluna feita com o empilhamento de hóstias que interliga elementos da colonização: o poder de um lado, escravidão e sofrimento do outro e, no meio, a religião e catequização. Detalhe: quando a obra foi criada, em 1987, o dinheiro no Brasil não valia nada. Para conseguir as 600 mil moedas de um centavo no banco, Cildo trocou apenas uma nota de 5 dólares. Repare como cada uma das suas obras, desde a sua produção até sua exposição, opinam e criticam dinâmicas da sociedade, política e economia de maneira discreta e inteligente.
Assista: Obras de arte que constroem espaços

3 – Física
Cildo não é expert em física, mas ele se interessa pelos conceitos que ela apresenta, já que eles nada mais são do que padrões abstratos que homem criou para calcular valores, medidas, pesos e distâncias entre as coisas. Uma nota de dinheiro, por exemplo, vale o que vale por conta do que está inscrito nela – e questionando isso, ele transformou o número de algumas notas de reais e dólares em zero. Do mesmo jeito, alterou padrões das medidas de uma régua e os pauzinhos num relógio de ponteiro. Ele mexe nas convenções internacionalmente conhecidas e propõe parâmetros nas suas obras.
Em Desvio para o vermelho, aquele site-specific que consiste numa sala repleta de objetos vermelhos e que você provavelmente viu em fotos ou ao vivo no Instituto Inhotim, ele remete ao padrão utilizado na física para medir a distancia de corpos celestes. Na exposição, Eureka/Blindhotland comenta sobre peso e volume ao apresentar 201 esferas de mesmo tamanho que têm, porém, pesos completamente diferentes. Em Arte física, projetos cujas documentações podem ser vistas na exposição, ele também remete à fisicalidade do corpo, ou às ações que ele se propõe para que determinada obra seja feita. Por exemplo: ele já estendeu 30 quilômetros de um fio no litoral de Paraty e aumentou em um centímetro o ponto mais alto do Brasil, o Pico da Neblina, ao tirar um centímetro de terra e colocar no lugar uma pedra de dois centímetros. Esses projetos não são apresentados como obra em formato de instalação ou pintura, mas como documentos dessas ações – e é exatamente por isso que muitas das obras do Cildo podem ser “difíceis de entender”.

4 – Espaço
Na obra dele, tudo é espaço: seja ele o espaço público, o cosmos ou o espaço arquitetônico. Por isso, muitas obras têm grande escala e nos convidam a entrar e participar. Entrevendo, por exemplo, que dá nome à mostra curada por Júlia Rebouças e Diego Matos, é uma instalação cilíndrica de madeira onde você é convidado a entrar e caminhar em direção a uma fonte de vento quente enquanto derretem na sua boca gelos de água doce e salgada. Em Volátil, ande descalço por um caminho instável e impregnado de cheiro de gás para chegar numa sala iluminada apenas por uma vela. Em Antes, suba uma escada que leva a uma plataforma com uma cadeira e uma mesa, de onde você pode ver outros objetos exatamente iguais, porém em menor escala e, dentro deles, outros menores ainda. No Brasil, a arte conceitual sempre esteve muito ligada ao corpo e às sensações, em te tirar da sua zona de conforto, proporcionando a criação de experiências.
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