Title Image

Grafite é arte? Duas entrevistas por Laura Rago

Grafite é arte? Duas entrevistas por Laura Rago

Ping-Pong com a produtora cultural Vera Santana:

Laura Rago – O grafite representa a cidade?

 

Vera Santana – O grafite não representa a cidade. Ele faz parte da paisagem urbana e interage com os cidadãos. E, desse modo, a arte tem o poder de alterar o estado das pessoas e agir pela transformação das cidades. 

 

LR – Por que os grafites foram vistos como vilões em algumas gestões na cidade de São Paulo?

 

VS – Os governos mais conservadores têm maior dificuldade com a leitura do grafite, bem como outras expressões artísticas. Exemplo disso é o extinto Ministério da Cultura. Esses governos representam eleitores que possuem, em sua maioria, uma visão rasa sobre arte, sobretudo arte pública. Enquanto não tivermos um projeto nacional, continuaremos com mandos e desmandos de governantes de acordo com o ego e com a vontade dos políticos em questão. 

 

LR – Terminamos o ano de 2019 com a sensação de que houve um aumento de grafites patrocinados. Por que as grandes marcas viram nessa arte uma maneira de promover seu business?

 

VS – As marcas querem exposição e estão em busca de aproximação com o público jovem. Com a Lei Cidade Limpa, do governo Kassab, as empresas foram impedidas de fazer propagandas em locais públicos, e as empenas surgiram como novas possibilidades de suporte de exibição, apontando para um diálogo com a juventude. 

 

LR – Há uma incoerência entre o grafite comercial e o autogestionado?

 

VS – De acordo com a Lei Cidade Limpa, os grafites comerciais, ou seja, sendo pagos por uma marca, não podem levar a assinatura da empresa, e de alguma maneira preservam o trabalho autoral do artista. Entendo que podemos chamar de alternativa de sobrevivência dos artistas. O grafite está passando por um processo de transformação e sua legitimidade se dá pelas mesmas questões que outras expressões artísticas também passaram: como viver de arte sem se vender ao sistema? O teatro e música independente, por exemplo, também se questionam nesse sentido. Talvez tenhamos que ser mais gentis com nós mesmos que produzimos arte e entender que a viabilização é necessária. Neste sentido, podemos desenvolver projetos que acolham a necessidade social da arte e a necessidade de sobrevivência dos artistas e dos produtores. 

 

LR – Os grafiteiros têm respondido às novas contradições da sociedade?

 

VS – O grafite não é mais uma expressão marginal há muito tempo. Conheço grafiteiros reconhecidos internacionalmente com opiniões políticas ultraconservadoras. Sabemos do machismo estrutural no meio da grafite, onde mulheres e glbtqs+ não têm espaço e são silenciadas. Seus autores e produtores muitas vezes exprimem formas da desigualdade social comum em nosso país. A arte deveria estar sempre ao lado da libertação da sociedade. Eu particularmente tenho lutado para dar voz a projetos não excludentes com artistas fora do eixo Rio/ São Paulo. No entanto, tenho encontrado muita dificuldade na viabilização: trazer mulheres grafiteiras ribeirinhas da Amazônia para pintar uma parede no minhocão é bem mais difícil que levar artistas de São Paulo para pintar as casas ribeirinhas na Amazônia, por exemplo. O trabalho está também no processo de desconstruir o pensamento colonizador para que tenhamos nessa galeria urbana e democrática trabalhos que representante a todos. Uma utopia, talvez… 

 

LR – Quais são as suas expectativas para o ano no grafite?

 

VS – Acredito que teremos muitas novas paredes com pinturas que abordam questões diversas. Eu estou programando alguns projetos com mulheres amazônicas e mulheres negras, e um projeto de gentileza urbana que se chama “Gentilização”. Vamos colorir essa cidade! 

Ping-Pong com Baixo Ribeiro – curador, urbanista e sócio-proprietário da galeria Choque Cultural, em São Paulo

Laura Rago – Há uma diferença entre grafite, street art e arte urbana?

 

Baixo Ribeiro – Graffiti, grafite, street art, arte urbana, arte de rua. Esses termos vêm sofrendo mudanças de sentido ao longo desses últimos 50 anos e, neste sentido, existe certa confusão em relação ao seu uso de lugar para lugar no planeta. Em geral, fora do Brasil, como para o curador inglês Cedar Lewisohn, autor do livro “Graffiti Revolution”, de 2009, o termo graffiti está relacionado à escrita, à ação ilegal e ao vandalismo, enquanto o street art designa a categoria artística realizada no espaço urbano – conceito amplo que permite a incorporação de diversas formas de expressão que vão desde projeções mapeadas, performances coletivas, instalações de escala arquitetônica aos murais e outras intervenções urbanas. No Brasil, usamos termos diferentes: para o que os estrangeiros chamam de graffiti usamos as palavras pichação ou pixo. Já as palavras graffiti ou grafite, em seu uso corrente no Brasil, designam, genericamente, todo o tipo de pintura realizada no espaço urbano ou mais especificamente aquelas produzidas com spray. Quando falamos de arte urbana, nos referimos às obras e ações artísticas realizadas no ambiente público urbano providas de intencionalidade estética e conceitual –– algo semelhante à street ou urban art. 

 

LR – Qual é a sua opinião sobre a visão do mercado da arte [feiras, galerias, bienais e instituições culturais] e dos curadores em relação à arte urbana?

 

BR – O sistema da arte, em sua maioria, reage de maneira contraditória ao que não é convencional: ao mesmo tempo que rejeita o que é diferente, quer e precisa da novidade. Desse modo, o sistema vem regenerando e mantendo sua relevância. Rejeitou, por meio da academia, das instituições museológicas e do mercado, movimentos artísticos fundamentais, como os que geraram a arte moderna, rejeitando até mesmo novas linguagens, como a fotografia e o cinema em seus primórdios. Sempre haverá uma forte rejeição antes da incorporação de qualquer inovação pelo sistema da arte. Nesse sentido, também tem sido com a arte urbana –– bem contraditória, com momentos de amor e de ódio e de reverência e de desprezo total. No final das contas, a arte urbana vai se impondo e o sistema se ajustando, num processo já cinquentenário. 

 

LR – Qual é o papel da arte urbana no mercado de arte?

 

BR – A arte urbana traz duas abordagens próprias que desafiam o mercado. A primeira é sua vocação natural para a inclusão de novos públicos nos processos de produção e fruição artística – algo que antagoniza com a exagerada busca pela exclusividade promovida pelo mercado de arte contemporâneo.  A outra abordagem diz respeito ao tipo de experiência que é oferecida ao público, que, diferente da arte contemporânea convencional, acontece por meio das plataformas públicas (reais e virtuais), sem filtros curatoriais e frequentemente alcançando grande audiência. Para o bem e para o mal, a arte urbana sugere uma ligação mais urgente, bruta e transparente da arte com o público. 

 

LR – Como você analisa o comportamento das autoridades em relação ao grafite, sobretudo em São Paulo?

 

BR – O poder público em São Paulo tem uma história conturbada com a arte urbana. Até 2006, havia uma inclinação à criminalização da prática, o que foi sendo gradualmente revertida após a instauração da Lei Cidade Limpa e com o simbólico apagamento do Grafite da 23 de Maio. Esses dois eventos reposicionaram a opinião pública a favor do grafite como parte da identidade visual da cidade, forçando o redirecionamento das políticas públicas para a promoção do grafite e sua descriminalização. 

 

LR – Por que o grafite é sempre alvo de polêmica? 

 

BR – O grafite é uma forma de expressão de escala urbana, que pode afetar o cotidiano de muita gente. A monumentalidade e o forte poder comunicativo dessa mídia tende a impactar grandes públicos e causar, naturalmente, reações populares. 

 

LR – Qual é o futuro do grafite?

 

BR – Duas palavras poderiam definir o futuro palpável: inclusão e urbanidade. Antes do final do século 21 mais de 80% da população do mundo viverá em grandes cidades. E grande parte dessa concentração será consequência do forte crescimento das correntes migratórias. Essa situação exigirá das grandes cidades, uma reformulação urbana que consiga minimizar os conflitos naturais consequentes aos choques culturais a que estaremos expostos. Nesse contexto, a arte de cunho público será cada vez mais necessária e presente. 

Laura Rago

É curadora e crítica de arte graduada em história e pós-graduada em Jornalismo Cultural e em Arte: Crítica e Curadoria. Trabalhou na Folha de S.Paulo como repórter de arte e música erudita, e foi editora-assistente na revista Bamboo. Colaborou para revistas como Vogue, Harper’s Bazaar e títulos da editora Abril. Atualmente, representa no Brasil o artista plástico argentino Tec e trabalha como curadora de projetos especiais na galeria Choque Cultural.

Leia Também

Poste um comentário