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Para além da polêmica: a artista Juliana Notari conversa com o BIGORNA sobre a instalação “Diva”, meses depois de ter sido instalada no parque Usina de Arte

Para além da polêmica: a artista Juliana Notari conversa com o BIGORNA sobre a instalação “Diva”, meses depois de ter sido instalada no parque Usina de Arte

Por Laura Rago

Quando lemos sobre Land Art ou ouvimos falar algo sobre o movimento – também conhecido como Earth Art, que teve início nos anos 1960 com projetos artísticos que se relacionam à natureza –, deparamos majoritariamente com artistas homens e norte americanos, como Sol LeWitt, Michael Heizer, Walter De Maria, Robert Smithson, e nos esquecemos de mencionar artistas mulheres também expoentes dessa corrente. Entre elas estão Nancy Holt, Ana Mendieta, Agnes Denes e Maya Lin.

Pegando carona no último vídeo da série Beabá da Arte Contemporânea do Bigorna sobre Land Art, batemos um papo com a artista recifense Juliana Notari, que ganhou os holofotes da internet nos primeiros dias de 2021 com a sua instalação Diva – uma vulva/ferida gigante, de 33m de altura, 16m de largura e 6m de profundidade.

A obra virou figura de proa na arte e fora dela quando a artista fez um post em seu perfil do Instagram divulgando o trabalho, no dia 30 de dezembro do ano passado (hoje o post tem mais de 27 mil curtidas e milhares de comentários).

 

É claro que a onda de ataques à obra é apenas a ponta do iceberg de um momento quando se intensificam a repressão moral e o conservadorismo político em uma sociedade já patriarcal e heteronormativa, em que alguns homens referem-se às mulheres como “portadoras de vaginas”.

 

No entanto, pela potência transgressora da arte, a instalação de concreto armado e resina pintada em tons avermelhados, projetada como uma ferida na terra, tornou-se potente crítica cultural feminista.

 

Seria limitado, contudo, enxergar o trabalho artístico da autora apenas como uma obra de gatilho, que ocupou as redes sociais do Brasil naquele mês e ecoou até na mídia internacional, ou como um símbolo estereotipado. O buraco é mais embaixo.

Imagens acima e abaixo: obra Diva (2020) instalada na paisagem do jardim
artístico-botânico Usina de Arte (Foto: divulgação/Juliana Notari)

PRAZER, DIVA

 

Diva é resultado da residência estabelecida no Usina de Arte, em Pernambuco, e de um convênio desse parque artístico-botânico com o Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, o Mamam, no Recife. O espaço ocupa hoje uma antiga usina canavieira, ícone da indústria sucroalcooleira no estado, que começou a operar em 1929 e chegou a ser a maior produtora de álcool e açúcar do país nos anos 1950.

 

Pensando em dialogar com o espaço e com a região, a artista Juliana Notari foi incentivada a fazer aquela instalação. “Na verdade, a Land Art surgiu pela condição do lugar, não foi algo que premeditei fazer. Como pesquisadora da arte, conheço os artistas e as artistas precursores daquele movimento, mas não me inspirei [neles] nem [os] usei como referência para produzir a instalação. Acredito que possa ser um bom momento para revisar essas ações que intervêm na paisagem e que isso seja conveniente para reatualizar também a nomenclatura. Fazer esse tipo de obra é caro, exige estrutura, engenharia e mecanismos próprios, que vão muito além dos museus ou instituições culturais fechadas. Lá, era eu e aquela natureza, cheia de camadas históricas e de uma força física natural impressionante.”

E foi por essas camadas históricas que se fez a ferida gigante. “Uma terra banhada de sangue e revolta, marcada pela dizimação de aldeias indígenas e pela escravidão [o parque fica perto de Palmares, onde ficava o Quilombo dos Palmares, liderado por Zumbi], pelo abuso [na relação] com a terra e a violência contra o meio ambiente (aquilo é Mata Atlântica!) e o processo também violento de queimada na colheita da cana-de açúcar. É ferida colonial sobre ferida colonial, o que tem sido um dos principais problemas e debates do Brasil. A obra é um tipo de religare com a terra, conectada à sua ancestralidade, e com as origens daquele lugar. Por tudo isso, a instalação tem aquela monumentalidade”, comenta Juliana.

Fato é que Diva pode também ser compreendida a partir de uma perspectiva feminista, uma vez que expõe as feridas traumáticas do feminino, como o abuso e o estupro. Porém, seria limitador resumir a obra apenas a uma enorme vulva. Para Notari, a polarização política do momento presente apagou questões mais profundas. “A forma de ferida tem forma de vulva. Entretanto, não coloco o debate feminista no primeiro plano da obra. Meu trabalho lida com essa e outras questões da figura do trauma, que abrem campos de interpretação e expandem o meu trabalho”, diz a artista. Se a intenção de Juliana fosse construir uma vulva, certamente a artista teria feito a instalação de modo diferente. “Não temos como fugir da condição biológica dos nossos corpos, mas entendo o masculino e o feminino como energias.”

Primeira performance institucional de Dra. Diva (2006) realizada na Galeria Vermelho, em São Paulo

PRAZER, JULIANA

 

A acalorada polêmica que se deu em torno da instalação acabou apagando o processo de trabalho da artista, limitando a sua extensa produção. “Tirando os ataques de ódio, todo aquele debate, sobretudo o que acompanhou a foto com os assistentes [negros], foi muito importante, enriqueceu a obra. Foi mais uma camada que agregou ao trabalho. Saímos do campo da arte. Não é um problema da arte ou da Diva, é um problema nosso”, conta Juliana, que teve seu nome superaquecido no mercado artístico e institucional e virou tema de pesquisa acadêmica no Brasil, na Inglaterra e na Itália.

 

Aos 46 anos, a doutoranda e mestre em Artes Visuais pelo PPG-Artes/Uerj, produz nas mais diversas linguagens (instalações, performances, vídeos, fotografias, desenhos e objetos), com abordagem multidisciplinar.

 

Diva é fruto de uma pesquisa que a artista vem desenvolvendo há muitos anos. O projeto começou logo após a artista ir à sede da Trapeiros de Emaús, uma associação voltada à venda de objetos usados, no Recife, e encontrar 22 espéculos de metal, instrumento antiquíssimo usado sobretudo em exames ginecológicos, que segue sendo utilizado pela medicina até nossos dias. Todos os objetos tinham o nome gravado com o da sua antiga proprietária: Dra. Diva.

Em Dra. Diva (2006), a artista fez alguns rasgos e buracos na parede da Galeria Vermelho com a ajuda de martelo e escopo,
banhando-os com sangue de boi e depois introduzindo espéculo vaginal (Foto: divulgação/Juliana Notari) 

“A ideia surgiu quando pensei em uma proposta para a SPAR (Semana das Artes de Pernambuco), evento voltado às intervenções e performances artísticas na rua, em 2001. Eu olhava aquelas brechas e fendas urbanas e imaginava colocar aqueles espéculos naquelas fissuras, de uma forma que aquela ação remetesse à imagem de ferida e vulva. Dessa maneira, criaria um estranhamento no espectador, despertando para o debate dos significados dos corpos.”

 

Mas esse projeto acabou não sendo apresentado. No entanto, na sua passagem por São Paulo, em 2003, resolveu colocar o projeto em prática nas paredes do ateliê coletivo em que criava. “Eu fazia as feridas com marretas, utilizando sangue. Achei que ia chamar mais atenção com a ideia de banhar aqueles buracos com sangue.” E este era de boi. Juliana fez um pacto com o açougueiro de um supermercado perto do seu QG, no bairro de Perdizes, que entregava para ela uma vez na semana o sangue do fígado de boi. Hoje, Juliana não mora mais na capital paulista. Segundo ela, é quase uma eremita e vive entre Recife, Olinda, Rio de Janeiro e Belém.

 

Foi só em 2006 que a fenda vermelha saiu do ateliê e ocupou pela primeira vez as paredes de um ambiente institucionalizado. O lugar escolhido foi a Galeria Vermelho, e aquelas ações de ateliê viraram performance. “O que são esses espaços institucionais? São espaços geridos pela lógica patriarcal. O cubo branco não tem nada: é um espaço fictício, dentro dos espaços patriarcais que não são neutros. Eu tratei as paredes da galeria como um corpo, “imaculando” aquele local. Queria desconstruir esses ambientes.”

Na ocasião, a artista abriu fendas na parede com ajuda de martelo e escopo, posteriormente banhando-as com sangue de boi e introduzindo, nas aberturas criadas, espéculos de aço inoxidável. A ação tinha como objetivo também questionar o mundo das artes, que segue as normas de um sistema de exclusão e discriminação social, racial e de gênero. “Tudo isso vem anulando o corpo da mulher. A relação de gênero, ao longo da história, é moldada por meio dessas instituições, que gera um apagamento histórico. Faço uma ferida para trazer essa violência nesta luta de inserção. Apenas 2% das mulheres estão no mercado de arte.”

De lá para cá, a artista desenvolveu o trabalho para outras ações e buscou novas formas de expressão, como a série Ferida da Bienal, de 2008, exibida na mostra Diário de Bandeja, Galeria de Arte Amparo 60, Recife, a plotagem fotográfica de Dra. Diva, que ganhou escala urbana e ocupou empenas e prédios de Berlim, Veneza, Amsterdã e Aix en-Provence, em 2009, e a ação Spalt-Me, de 2012, feita na Galeria Marta Traba, do Memorial da América Latina. Em comum, os trabalhos exibem fendas vermelhas e retratam a violência humana ao longo da história sobre os corpos, numa constante relação entre passado e presente.

Conhecida por seu trabalho orgânico e fluido, ela trata de temas que vão da morte à violência humana, e debate questões que vão do testemunho à sexualidade e ao meio ambiente. Suas intervenções se dão também tanto na esfera pública da arte quanto na esfera privada.

Amuamas, de 2018, feita no Igarapé Piriquitaquara na Ilha do Combu, próximo a Belém

EXPANDINDO LIMITES

 

É verdade que desde 2014, quando participou do Arte Pará, em Belém, tendo como curador geral do salão Paulo Herkenhoff, a artista começou a expandir as fronteiras do seu trabalho para outros territórios fora dos espaços normativos e fechados da arte. Entre os destaques estão Mimoso (performance realizada na Ilha de Marajó, no Pará, em 2014), Soledad (videoperformance e ritual feito no mausoléu de um cemitério abandonado de Belém, em 2014) e Amuamas, de 2018, feita no Igarapé Piriquitaquara na Ilha do Combu, próximo a Belém. Esta ação ritualística de persistência e de ciclos vitais é carregada de força mística. Munida de instrumentos cirúrgicos e de seu sangue menstrual coletado ao longo de nove meses, Notari adentra a Floresta Amazônica e intervém em uma samaúma, árvore conhecida como a rainha da Amazônia e por guardar e distribuir água para outras espécies.

Videoperformance Amuamas (2018) feita no meio da Floresta Amazônica. Na intervenção ritualística, Juliana fez uma fenda numa centenária árvore
Samaúma e introduz seu sangue menstrual, coletado e congelado ao longo de nove meses (Foto: divulgação/Juliana Notari) 

Diferentemente de Mimoso e Soledad, performances que tratam de várias questões como violência, morte e até subversão dos lugares de gênero, Amuamas versa sobre a correlação do corpo feminino com a beleza e o ambiente da floresta.

 

O trabalho de Juliana é denso e lança luz sobre várias feridas da humanidade, que se transformaram em cicatrizes profundas e irreversíveis. Perguntada se teria feito alguma coisa diferente, ela diz que não. “Quero resolver agora alguns problemas técnicos. A pintura dela não está terminada. O aspecto [original da obra] é mais ferida. Quando vejo as imagens de drone, ela parece muito vulva. É uma ferida/vulva e tem de ter essa ambiguidade. Gosto muito de relacionar a obra com a natureza e à imagem de Gaia e Pachamama, num constante elo entre o corpo da terra e o corpo da mulher”.

Frame de Mimoso (2014), videoperformance com três projeções de videos simultâneas realizada na Ilha do Marajó em coprotagonismo com o búfalo Mimoso. A ação integra a pesquisa sobre a presença do corpo feminino em contraposição à uma sociedade que se orgulha da virilidade e do falocentrismo (Foto: divulgação/Juliana Notari) 

Na conversa, Juliana conta também que talvez deveria ter mudado uma palavra no texto do post, que gerou bastante confusão e teve a ver com a questão da transfobia. “Gostaria de ter ampliado a discussão sobre o feminino que não está apenas no gênero binário e não tem uma só perspectiva.” Para ela, existem vários femininos e feministas. E acrescenta, “nossa realidade é a ferida do Brasil. A arte reproduz o que está no cotidiano, denunciada no processo artístico”, conclui a artista.

 

Diva tornou-se uma potente ferramenta de reflexão de fato, sem distorções, sobre o momento presente, atuando essencialmente na conscientização acerca dos conflitos e sobre os destinos histórico-sociais que brotam desse mundo.

Conheça outras obras de Land Art feitas por artistas mulheres:

La Venus Negra (1981), de Ana Mendieta
Tree Mountain (1982) de Agnes Denes feito na Finlândia
Os famosos Túneis Solares (Sun Tunnels, 1973-76) de Nancy Holt (1938-2014) feito no Deserto da Grande Bacia (Great Basin Desert), em Utah
Instalação Up and Under (1987-98) de Nancy Holt realizada em Pinsiö, na Finlândia
Memorial aos mortos na Guerra do Vietnã (Vietnam Veterans Memorial, 1982) criado por Maya Lin está inserido na paisagem de Washington, DC
Eleven Minute Lins é uma série de instalações que Maya Lin chama de Earth Drawings. A land art que aparece na foto está localizada na Suécia

Laura Rago

Laura Rago é curadora e crítica de arte graduada em história e pós-graduada em Jornalismo Cultural e em Arte: Crítica e Curadoria. Trabalhou na Folha de S.Paulo como repórter de arte e música erudita, e foi editora-assistente na revista Bamboo. Colaborou para revistas como Vogue, Harper’s Bazaar e títulos da editora Abril. Atualmente, representa no Brasil o artista plástico argentino Tec e trabalha como curadora de projetos especiais na galeria Choque Cultural.

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