FAZER RIR É UMA ARTE
A invasão ou inclusão dos memes na discussão e no cenário artístico contemporâneo
Por Luana Ferrari
Eu não sei vocês, mas eu pago internet para ter acesso ilimitado às pérolas da maior criação artística do novo século: os memes. Pois é. Eu estou me atrevendo a chamar um meme de arte. Quanta ousadia, né?
Confesso que nunca tinha parado para pensar sobre isso, mas, outro dia desses, em uma conversa intrigante sobre o mundo da arte contemporânea com um “outsider” – como ele mesmo se definiu – o assunto veio à tona.
Eu estava lá, pagando de inteligente e esbanjando todo o meu conhecimento sobre o valor e o significado da arte do século 20, quando o forasteiro rebateu:
“Para ser um pouco controverso, eu acho o olhar umbigado em torno da arte contemporânea meio bobo.
Um meme não é uma obra de arte? Eles são uma mistura criativa de cultura e ideias.
O que separa o Bernie Senders de luvinhas sendo inserido em diferentes cenários, das copias infinitas de Marilyn Monroe feitas pelo Andy Warhol?
Existe uma proficiência técnica e um pensamento crítico aguçado sobre a cultura pop em cada um deles”.
Xeque-mate!
“O DIA D E A HORA H”
Para tentarmos começar a desenvolver um raciocínio, que muito provavelmente não chegará a conclusão alguma, eu proponho que voltemos à escola e recorramos ao bom e velho dicionário e, para isso, apresento duas definições da palavra arte.
Segundo o Houaiss, um dos mais prestigiados glossários léxicos da língua portuguesa, arte é a “produção consciente de obras, formas ou objetos, voltada para a concretização de um ideal de beleza e harmonia ou para a expressão da subjetividade humana”.
Para contrapor toda essa erudição, o Merriam-Webster – site americano que inclui um dicionário completo e uma enciclopédia informativa onde todas as definições são puramente educacionais e bastante objetivas – diz que arte é “o uso consciente da habilidade e imaginação criativa, especialmente na produção de objetos estéticos”.
Em paralelo, quando falamos em meme, estamos descrevendo, de certa forma, um objeto estético criativo que possui vários níveis de interpretação, e que é o resultado de um arranjo de informações com a finalidade de trazer um significado que expresse a subjetividade (ou objetividade) humana.
Enfim, é um texto, é uma obra de arte, e talvez, mais do que isso, o meme é uma expressão individual que existe entre a arte visual, a arte conceitual e a arte pós-internet.
Os teóricos não cansam de dizer que para compreender uma obra de arte é preciso considerar o contexto no qual ela foi produzida. A arte é influenciada por um pensamento, uma ideologia, uma época, um lugar, da mesma maneira que um meme baseia sua criação na combinação de texto, imagem e referência cultural.
A inexorável acusação de reducionismo pesa sobre as tentativas de trazer o fenômeno memético à dimensão, embora rica, de um experimento linguístico do humor contemporâneo. A secularização dos estudos culturais e a promiscuidade intelectual da equação internet = inovador = futuro desencadearam uma erupção de estudos acadêmicos voltados para a dissecação da natureza dos memes. Hoje foi construída uma verdadeira teoria do meme, a memética.
Estudiosos acreditam que o meme seja mainstream o suficiente para ser abordado com certa ironia, e para ser experimentado como potencialmente vanguardista, tornando-se o objeto cult de um tipo particular de gentrificação intelectual. A premissa é que essa definição os livraria do status de ironia digital e os transformaria em ferramentas de reflexão sobre a criatividade contemporânea.
Basta notar que, quanto mais os memes encontram legitimidade e são incluídos no panteão dos produtos culturais, mais a palavra arte começa a surgir como definição destas intervenções eruditas.
O MEDO DE VIRAR JACARÉ
Alguns dos maiores movimentos da história da arte também fizeram barulho quando eram novidade. Os impressionistas, por exemplo, receberam seu nome por conta de um crítico que contundentemente tratou as obras como impressões ou meros esboços inacabados. Ainda assim, o movimento acabou sendo uma das ondas artísticas mais influentes da história, que serviu de inspiração para o neoimpressionismo e o cubismo.
Em um momento histórico em que o termo “artista” acompanha perfis do Instagram de influenciadores desordenados e bem-intencionados cuja contribuição artística para a categoria ainda permanece de avaliação duvidosa, no labirinto cibernético as mentes criativas por trás dos memes estão começando a se proclamar como os iniciadores de um movimento de arte digital original e inovador. Fomentados pela noção de que o viral gera um reconhecimento automático do status artístico de alguém, seus criadores poderiam buscar uma carreira virtual como os próximos artistas de vanguarda do século 21.
Fortemente investidos na missão de emancipar a arte dos censores do passado, os memers escrevem pôsteres futuristas reivindicando de forma pomposa a inauguração de uma arte total, desengajada e troll – fazendo referência aos provocadores que se servem de comentários controversos ou irrelevantes para tumultuar comunidades virtuais. Seus criadores se valem de uma filosofia mais ou menos dogmática em que a definição de arte é usada de forma reacionária em contraste com esta nova vanguarda memética.
Para promulgar a autenticidade estética dos memes, seus defensores se esquecem de um século de produção artística, construindo uma mitografia pessoal na qual seus criadores se identificariam como os herdeiros lendários das subversões de Duchamp que eram dramaticamente à frente de seu tempo.
Em meio à inovação dos impressionistas e a quebra de paradigmas dos dadaístas, quando tentamos validar os memes como uma expressão artística o paralelo mais óbvio a se traçar ainda seria com Andy Warhol cuja obra é repetidamente calcada na apropriação de imagens da cultura popular, nada distantes de como os memes são criados hoje em dia.
A pop art foi um marco por se propor a confundir os limites entre a erudição artística e a tal arte popular.
Se Warhol pode tratar latas de sopa e anúncios publicitários como bases para suas obras, porque os questionamentos filosóficos feitos em cima da imagem do Chapolin Colorado não haveriam de ser legitimados como um meio criativo que estaria no mesmo patamar das artes mais “tradicionais”?
“JÁ ESTOU COM ROUPA DE IR”
Outra questão bastante intrigante que o nosso caro “outsider” levantou na conversa foi da importância (ou desimportância) do artista no âmbito memético.
“Existem milhares de estudantes de arte escrevendo milhares de teses sobre Warhol e não há (talvez) ninguém por aí tratando com a mesma profundidade as pessoas que dirigem o motor mais poderoso da história da reflexão sobre a cultura pop atual”?
“Nós queremos adorar Warhol porque ele é descolado. É misterioso. Warhol não é Warhol sem ser Warhol. E eu pergunto: quem faz os memes? Eles existem como arte sem o contexto do artista. O artista não é legal. Não podemos adorar o artista”.
Os memes são uma expressão com um poder democratizante, inato fruto da coletividade utopicamente anárquica da colaboração digital. Eles são atribuídos a um território estético obscuro que os une conceitualmente a obras de arte participativas, nas quais a conexão entre criadores e consumidores de produtos artísticos é de certa forma promíscua. Capazes de envolver seu público com fibra e um conhecimento pouco técnico de ferramentas digitais acessíveis a qualquer um, os memes derivam seu apelo artístico da acessibilidade indiferenciada à modificação de seus conteúdos. A interatividade e hackeabilidade dos produtos meméticos os identificaria como os herdeiros ideais dos experimentos artísticos radicais dos anos 1960, empenhados em reescrever o conceito de arte em direção à base de sua disponibilidade cada vez mais inclusiva.
Para deleite dos pós-estruturalistas, os memes trariam definitivamente a morte do autor na era da reprodutibilidade digital da obra de arte, cancelando definitivamente as trivialidades românticas da autenticidade e originalidade como padrões estéticos. Os memes desmistificariam a arte tradicional, fundando um novo tipo de criatividade 2.0 que, finalmente, uniria indissoluvelmente a arte ao seu público em produções criadas e consumido pelas mesmas categorias de usuários. Para a estética digital, os memes são uma arte da qual todos podem se apropriar. São obras capazes de transformar qualquer pessoa em um artista e em cujos conteúdos reinventáveis todos podem se projetar. Estas reproduções permitem a reconstrução de vínculo empático há muito minado entre as obras de arte contemporânea e suas audiências.
“NÃO SOU CAPAZ DE OPINAR”
Quem decide o que é arte hoje em dia? O mercado? Os curadores? Os sociólogos? Os filósofos? Os museus e instituições? Os galeristas? Os próprios artistas? O público?
Os memes perderiam seu poder e significado se estivessem pendurados nas paredes de um museu?
Qual a diferença entre os milhares de imagens de obras de arte que fotografamos em museus e que colecionamos hoje em nossos celulares, para os também milhares de memes que ocupam os gigabites de nossos aparelhos eletrônicos?
No final das contas, trago mais questionamento do que conclusão. “Chama no Pix” que o papo ainda rende.
Na sua forma mais básica, um meme é tudo aquilo que os utilizadores da Internet repetem, independente e inconscientemente de seus criadores. É uma ideia propagada e, se descartarmos seu meio de difusão e o descolamento do ícone arte/artista, independente de os considerarmos ou não “arte para todos”, não podemos dizer que os memes estejam traçando um caminho remotamente surpreendente.
Sua suposta originalidade repousa em pesquisas artísticas já exploradas e nem tão atuais assim. Em um mundo onde o citacionismo e o ecletismo são a base de qualquer fenômeno, mesmo que remotamente cultural, os memes poderiam ser vistos como parasitas de uma arte que seria capaz de estar se reinventando em termos mais originais.
Sua presença e relevância para gerações mais ou menos adeptas do mundo digital é inegável, mas não estariam os memes se tornando vítimas de seu próprio sucesso? De certa forma, a obstinação para que eles sejam considerados como arte sufoca seu potencial expressivo mais interessante, tornando-os principalmente uma paródia criativa do último século artístico.

Não tem nenhum comentário