O NFT PARA ALÉM DO UNIVERSO GEEK: TRADUZINDO A NOVA POLÊMICA DA ARTE DIGITAL PARA O BOM PORTUGUÊS
O NFT PARA ALÉM DO UNIVERSO GEEK:
TRADUZINDO A NOVA POLÊMICA DA ARTE DIGITAL PARA O BOM PORTUGUÊS
Por Luana Ferrari
Entre um lockdown e outro, notei que por enquanto eu dançava brega funk no meio da sala e encarava as rotinas de malhação mais absurdas para tentar não definhar os músculos andando da sala para o banheiro em um apartamento de 30m2, meu cérebro estava dando pinta de que iria atrofiar.
Com isso posto, o desafio passou a ser incitar a vida inteligente que mora em mim sem surtar com as notícias que envolvem crise sanitária e política internacional. E se você pensa que a diversão que rolou aqui em casa foi tour virtual de museu e leitura de grandes clássicos, está deveras enganado.
A distração do momento desta singela jornalista está pautada em festejar o dia do “pi” (o 3,14…), entender como funcionam as Bitcoins e seguir as maluquices do trilhardário Elon Musk no Twitter. Versatilidade é a palavra de ordem.
E quando eu pensava estar me embrenhando em um universo completamente aleatório, uma obra digital do artista BEEPLE foi arrematada pela bagatela de 69 milhões de dólares (387 milhões de reais) e o mundo da arte começou a falar em criptomoedas, blockchain e NFT.
Era chegado meu momento de brilhar e mostrar meus recém adquiridos conhecimentos para o mundo.
Imagem de capa: “Right Place & Right Time (Bitcoin Hourly Price Offset)” do artista mattkane (Fonte: Async)
BEEPLE E A “EVERYDAYS – THE FIRST 5000 DAYS”
Para o caso de você ter perdido o bonde, façamos um parêntese no maior estilo Wikipedia só para contextualizar.
O dia 11 de março de 2021 foi histórico e sem precedentes no mundo da arte quando a casa de leilões inglesa Christie’s vendeu uma obra inteiramente digital pela primeira vez a um preço recorde.
“Everydays – The First 5000 Days”, uma colagem de cinco mil imagens criadas de forma incessante entre 1 de maio de 2007 e 7 de janeiro de 2021, já é considerada a obra prima do americano Beeple (Mike Winkelmann) medindo 21.069 pixels (que é a unidade de medida das imagens online) e foi arrematada pela astronômica quantia de 69.346.250 dólares.
A venda bateu dois recordes importantes: esta não foi apenas a obra digital mais cara de todos os tempos, mas também foi o lote mais caro já vendido em um leilão inteiramente online. Este foi o terceiro preço mais alto pago em leilão por um artista vivo. O recordista ainda é o “Rabbit” de Jeff Koons, que foi vendido em maio de 2019 por 91,1 milhões de dólares, seguido pelo “Retrato de um artista” de David Hockney, vendido em novembro de 2018 por 90,3 milhões de dólares.
Beeple deixou comendo poeira artistas como Gerhard Richter, Lucian Freud e Damien Hirst com uma obra que começou valendo apenas uma centena de dólares quando o leilão foi aberto no dia 25 de fevereiro.
A Christie’s compartilhou que 91% dos participantes do leilão eram novos clientes da casa e nos ajuda a provar que os millennials (geração nascida entre 1981 e 1996) entraram de vez na brincadeira, tendo sido os responsáveis por 58% das ofertas. Estava aberto um precedente histórico para a evolução da criptoarte.
MAS COMO ASSIM ALGUÉM PAGOU MILHÕES DE DÓLARES EM UM ARQUIVO JPG?
As moedas digitais são as criptomoedas, arte digital é criptoarte e, sim, isso significa que alguém pagou muito dinheiro por um arquivo JPG como os que você cria quando faz lindos desenhos no paintbrush. Mas como diferenciar uma obra de arte com valor agregado daquele print que você faz do encontrinho virtual com os amigos para postar nas redes sociais?
É aqui que entra o tal do NFT para garantir a autenticidade da obra através de códigos criptografados que contêm a assinatura do artista e diversas outras informações (data de criação, características técnicas do arquivo, nome do proprietário), e que são divulgadas apenas com o arquivo original.
É este NFT que faz a diferença entre a obra real/oficial e qualquer outro arquivo JPG que possa circular pelo mundo virtual.
E se a tecnologia legitima a obra, ela também tem seu papel no quesito suporte. Comprar um arquivo JPG é a mesma coisa que comprar um disquete nos idos anos 90, ou um VHS nos anos 80 e o feliz proprietário da obra pode exibi-la como e onde ele quiser. Ele pode contemplar a arte pelo computador, na tela do celular, mostrar para os amigos em um tablet, ostentar uma projeção na parede da casa como se fosse um quadro e até coloca-la na tela da televisão e desfrutar do trabalho por enquanto relaxa confortavelmente deitado no sofá.
E se todos esses suportes de exposição (e tantos outros) são possíveis, a obra também pode ser emprestada a museus e galerias para mostras temporárias.
Tudo isso parece muito revolucionário, mas a verdade é que a arte digital já é uma realidade há muito tempo e artistas contemporâneos se servem de ferramentas de hardware e software para criar e distribuir seus trabalhos há cerca de vinte anos. A transformação que estamos presenciando é que o NFT está permitindo que esta arte criada exclusivamente em meios digitais seja devidamente comercializada e fazendo com que os artistas encontrem, de uma vez por todas, seu lugar no mercado.
NFT?
Nesta vida a gente não precisa saber de tudo. O que a gente precisa é ser bem relacionado e conhecer quem saiba de tudo.
Curiosa eu sou e na internet tem explicação até sobre como dar uma chinelada em uma barata, mas as vezes o Google não ajuda quando tentamos entender conceitos mais elaborados porque precisamos de alguém que nos pegue pela mãozinha e fale uma língua que a gente entenda.
O gênio da lâmpada que me ajudou nessa empreitada, foi um advogado especializado em capital de risco que atende pelo nome de Mike Mills, e que, além de me lisonjear por acreditar na minha capacidade de entender essa loucura, é uma pessoa paciente e didática e eu vou, descaradamente (e com a permissão dele), roubar as muitas aulas que ele me deu sobre um assunto que ele domina e eu não.
O NFT é relativamente novo e podemos imaginar que a tecnologia não foi criada visando o mercado da arte. Um dos primeiros usos dessa inovação data do final de 2017 em um jogo virtual chamado “CryptoKitties”, uma espécie de Tamagochi para adultos onde o jogador cria, compra e vende gatinhos virtuais por quantias que podem chegar a até 100 mil dólares.
Convenhamos, se você está disposto a pagar 100 mil dólares por um bichinho virtual, você quer que seja exatamente o bichinho virtual que você escolheu e não uma imitação barata. É neste momento que o NFT e seus blockchains (mesma tecnologia usada nas criptomoedas como as Bitcoins) geram uma “cadeia de blocos” digital criada de forma coletiva e que é imune a alterações.
NFT é a sigla para “Non-fungible token” (token não fungível, em tradução livre). No meu mundo, token é aquela chavinha que a gente usa para autenticar transação bancária e quando o meu gênio perguntou se eu sabia o que era fungibilidade eu só pude dizer que nesta definição toda eu só conseguia identificar a palavra “não”.
“Eu te devo 1 euro”, ele me disse. “Na minha mão eu te estendo 5 moedas de 1 euro. Faz diferença para você qual delas você pega?”
“Isso é fungibilidade. Objetos distintos que são intercambiáveis. Pouco importa se você tem o direito de possuir a Bitcoin #7 ou a Bitcoin #882348”.
“Mas e quanto ao seu direito de possuir um pedaço de papel onde eu desenhei e um pedaço de papel desenhado pelo Picasso?”. Por mais apreço que eu tenha pelo meu gênio e ache que um desenho dele tenha lá o seu valor, ei de convir que não é exatamente a mesma coisa do que ter um desenho do Picasso em mãos.
E não pense que o NFT não serve para você porque possuir um Picasso te parece muito surreal. “Se você compra uma casa, você tem um pedaço de papel dizendo que você é o dono daquela casa. A maneira de confirmar que você é mesmo o proprietário do bem, é olhando para aquele pedaço de papel”.
“Neste pedaço de papel você pode escrever que possui uma casa, um carro, uma criptomoeda, o desenho de um gatinho ou uma obra de arte. O papel é apenas o veículo que contém palavras atestando quem é o dono de alguma coisa que não está materializada no tal papel. Por conseguinte, não há nada que te impeça de colocar este papel em um computador” (ou em um token).
“Pergunta…como eu faço disso um token não-fungível?” Ilustração por Dennis Goris (Fonte: @dennisgoris)
AS DIVERSAS VERTENTES DESTA INOVAÇÃO
E quando eu já estava me dando por satisfeita achando que eu tinha aprendido o suficiente sobre criptotecnologia e meu foco era apenas a conclusão deste artigo, meu gênio veio com um conceito arrebatador: o de “smart contracts”, que seriam contratos inteligentes.
A arte digital já existia há muito tempo e nada impedia os artistas de comercializarem suas obras como alguém que monta uma barraquinha em uma feira de artesanato. Mas se você comprar um quadro com paisagem bucólica de um artista de rua e pendurar na entrada da sua casa, nada impede que um quadrinho muito similar, feito pelo mesmo artesão, esteja pendurado na entrada da casa do seu vizinho.
Lembra quando lá no começo do texto eu disse que o NFT (o token) guarda informações criptografadas que vão além da assinatura do artista e que “são divulgadas apenas com o arquivo original”?
O diferencial aqui é que, além do quadrinho, você passa a possuir este token (NFT) que prova definitivamente que a obra é única e atesta quem é dono, e é esta legitimidade que faz com que o quadrinho (ou, neste caso, o arquivo JPG) aumente de valor.
E a novidade não para por aqui. O direito de uso no mundo da arte é um conceito bastante complexo e possuir uma obra não te dá o direito de transforma-la em outras obras e, menos ainda, de replica-la. O seu único livre-arbítrio é decidir se o quadro vai ficar pendurado na sala, no banheiro, guardado no armário, ou se você vai revende-lo.
E é aqui que jaz a revolução.
O artista incorpora neste token tudo o que o proprietário da obra pode fazer com ela, inclusive se, como, onde, quando e porque esta obra será revendida, e esses dados são acessíveis a todos.
No mundo analógico, quando eu vendo o desenho que o meu gênio fez para mim quem lucra sou eu. Ele pode, quando muito, ficar envaidecido por ver a arte dele valorizada. No entanto, com o NFT, ele pode criar um “smart contract” precisando que se eu vender o desenho, uma porcentagem da venda vai para ele. Deveras um contrato esperto.
Parece banal, mas ele me explicou e eu concordei que se “nós fizermos esse acordo no papel, ele pode ser rompido. Você pode vender o desenho, o novo proprietário revender o desenho e assim sucessivamente passando por umas trinta pessoas antes que eu pudesse se quer imaginar que essas transações todas estavam acontecendo”.
“Existe um registro central para propriedades (vide cartórios) e existe uma espécie de registro central para música, mas não existe um registro central para a arte”. Nessas horas ajuda ter um gênio advogado na manga para nos lembrar que quando alguém compra um quadro não tem uma base de dados registrada em cartório que diga por onde a obra já passou e quais acordos contratuais foram feitos em torno dela.
O NFT criou, então, essa base de dados onde cada comprador conhece com riqueza de detalhes a história da obra em questão. O artista passa a poder vender uma obra embutida de um “smart contract” garantindo que, por toda a eternidade, em todas as vendas, parte do lucro vá para ele ou para os seus descendentes.
E isso não vale apenas para obras digitais. Nada impede que artistas “tradicionais” passem a se valer do NFT e seus “smart contracts” quando negociarem seus direitos com galeristas, por exemplo.
E AGORA?
Agora, o que o povo quer saber é se nós estamos mesmo assistindo à uma verdadeira revolução na história da arte ou se tudo isso não passa de mais uma mera bolha especulativa.
A arte digital e/ou criptoarte entrou de vez para o mundo canônico e institucional da arte?
Será que os artistas mais tradicionais vão querer se aventurar pela criptoarte?
Os colecionadores estão mesmo interessados e dispostos a pagar centenas ou milhares de dólares para possuir uma obra digital exclusiva?
O avanço tecnológico está transformando de vez a comercialização da arte de maneira geral?
Com a chegada dos “smart contracts” como fica a relação artista/galeria? E a relação artista/galeria/colecionador?
Para variar, terminamos com mais perguntas do que começamos e o questionamento foi meramente introduzido.. Nas últimas semanas, NFT e criptoarte são conceitos que se tornaram parte frequente do vocabulário dos fóruns de arte e ainda há muito a ser discutido, compreendido e explorado.
Por hora, a realidade com a qual estamos lidando é que a aplicação e uso de NFTs estão causando um burburinho mundial e está, de certa forma, subvertendo o mundo da arte. O que fica para o tempo nos contar é se esta transformação nos levará realmente a uma nova forma de conceber o sistema e o mercado em comparação com a forma como os conhecemos hoje.

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