O hoje para Artur Barrio
Esta é uma matéria diferente. O que, de início, seria uma entrevista com o artista Artur Barrio, um dos gigantes da arte brasileira e internacional, assumiu, como se verá, um formato diverso. Depois de idas e vindas, de encontros e desencontros, decidimos conversar por e-mail, o que, à primeira vista, fez parecer que nos ateríamos a alguns temas com relativa objetividade. O que se imaginava uma breve interlocução rendeu um verdadeiro depoimento, ao qual se juntaram alguns acréscimos por meio de chamadas telefônicas e mensagens de WhatsApp. Foi assim que se deu uma rara e generosa troca, que aqui venho compartilhar. Por Laura Rago
O silêncio já dura dois anos. Afastado do sistema e do mainstream da arte e vivendo o período de pandemia completamente isolado, seja no mar, seja em terra firme, Artur Barrio topou conversar com o BIGORNA acerca do momento presente. Ante uma crise de proporções mundiais que não dá sinais de arrefecer, o gesto de olhar para o passado pode ajudar a entender o presente, em tempos de NFTs e virtualidade em excesso, e a pôr em perspectiva o futuro da arte.
A contribuição singular desse artista, figura de resistência do Brasil dos anos 1970, revela-se flagrantemente atual. Obras que denunciavam os desmandos, as desigualdades e a miséria do país, por vezes, parecem retratar o momento presente. Revisitar essa produção hoje, quando somos tomados pela sensação de que o passado se repete, ganha um sentido de urgência.
De: Laura Rago De: Artur Barrio
Para: Artur Barrio Para: Laura Rago
Passado um ano do início da pandemia, continuamos em um Brasil que chafurda numa espécie de paralisia social, ao mesmo tempo que o governo federal não esconde sua nostalgia da ditadura militar e sua aversão à cultura. Vivemos numa era de cegueira humana. Não a física, como conhecemos, mas aquela que faz o ser humano perder a visão crítica. Os artistas, por sua vez, são dotados de sensibilidade particular para detectar e traduzir as mudanças no modo de vida da sociedade.
… bolhas de ar comprimido que se expandem sucessivamente na água salgada a partir de uma certa profundidade, as quais ao chegar à superfície aí desaparecem ao espocar e assim sucessivamente …
… a bolha é a determinante de si mesma ainda que condicionada à pressão, à descompressão e ao desaparecimento, ou seja, a bolha é a teimosia e a vontade de ser face ao mais obscuro passado presente, retomado nesta charneira não de papel gomado, mas de atos e bravatas prenhes de absurdos, estes apoiados por cinquenta e sete milhões e oitocentas mil vozes, pela fumaça dos incêndios, pelo ronco dos motores das motocicletas, pela perseguição à ciência e às artes, pela discriminação, pela precariedade, pelo descaso e tudo isso no país do futuro e, portanto, na utopia que é esse futuro, situado que está numa área imensa pela qual passa a linha do equador, linha essa que um artista tentou cortar ao criar um tosco objeto composto de uma queixada de piranha atada por um fio de cânhamo a um pedaço de um galho encontrado em meio às cinzas de uma queimada ainda envolta pela fumaça silenciosa da morte … em plena selva amazônica.
Para continuar nossa conversa, inscrevo este texto de minha autoria, feito em 16 de março de 2020, acompanhado do trabalho NADA, composto do cartão no qual está inscrita a palavra, de pó de café de qualidade, além do espaço, ainda que visível em parte, no qual se insere.

NADA não é DÁDÁ é NADA…
NADA… e o “poderoso” mercado de arte. Feiras, feiras, feiras, feiras… $ … galerias de arte; o que é normal, assim como os museus… $ … !!! Pandemia é normal, historicamente, que o seja, mas e agora? A Bolsa caiu? O mercado de arte está com sintomas de falência, saudável ou não? O que importa para a arte? Que o seja, ou não ???… E a arte ????… e o artista ?… (sorrisos por parte dos galeristas, mercadores, colecionadores, curadores e pessoas tristes)… porque, diferentemente, estamos habituados às cavernas, solidão, vento, água salgada, onde a arte é prenhe de si mesma, enquanto o mundo se clopctua em borrifos de álcool em gel, esperando o horror passar entre soluços e lágrimas diante dos lobos, que, execrados, uivam esfomeados, não diante do cadáver, que esse é para as hienas e os ratos, mas sim diante dos corpos (dos) vivos já não tão vivos, devido às suas perdas financeiras, mas ainda assim desejáveis por justamente não terem conseguido ser lobos.
A ameaça constante à democracia e à liberdade de expressão nos obriga a lembrar o período mais duro da ditadura militar, que se deu sob o AI-5.
Viemos [Artur e sua família] para o Brasil em 1955 [o artista nasceu em 1945 no Porto, Portugal] deixando para trás Portugal, o Estado Novo, a ditadura salazarista. Bonita a chegada ao Rio de Janeiro, dia límpido, ensolarado, com o navio deslizando em um mar impressionantemente calmo acompanhado por golfinhos em sua proa. E assim entramos na Baía de Guanabara.
Nove anos depois, acontece o golpe no país do futuro, pondo fim a um governo democraticamente eleito, e, quatro anos mais tarde, vem o AI-5 (1968). E assim se passaram 21 anos, de 1º/4/1964 a 15/3/1985, período esse de censura, opressão, perseguição sistemática, tortura, assassinatos e exílio.
Em 1974, dá-se a Revolução dos Cravos (Portugal, 25 de Abril). Com o fim da ditadura salazarista, retorno a Portugal. Em 1975, viajo a Paris, onde residi até 1984. A partir de 1980, passo a fazer um vai e vem entre Amsterdam e Paris, até que, em 1984, passo a residir em Aix-en-Provence. Faço o meu trabalho aqui e acolá e, geralmente, mostro-o em espaços alternativos. Retorno ao Brasil em 1993 e passo a viver na cidade de onde tinha saído em 1974, o Rio de Janeiro.
A quem interessa um país sem memória? Urge que a nossa história recente seja contada aos mais jovens e aos mais velhos evocados. Nesse sentido, trazer “Trouxas Ensanguentadas” é importante para que nossa história, a partir da obra, seja rememorada e ressignificada à luz do momento presente.
Leucotomia social. Difícil contar a nossa história recente aos mais jovens.
Quanto aos mais velhos: rememorar! … o que resta aos mais velhos senão rememorar, já que o futuro é certo, de uma certeza kafkiana ao som dos Noturnos, de Chopin, ou das Vexations, de Erik Satie por John Cage?
Se a juventude abdicou de ser a pimenta-malagueta da Terra, quem a será? A passividade inerente ao “admirável mundo novo” e à “sociedade do espetáculo” e, assim, aí está ela, a juventude, em sua fantasia crepuscular de uma noite infindável sem estrelas, planetas, constelações, meteoros e satélites, mas… mas, em uma caverna, não a de Lascaux, Altamira ou Cosquer e muito menos as da Serra da Capivara, e nessa caverna percebe ela, a juventude, as sombras de si mesma em sua opacidade plena … [ ] … Talvez … sim … Talvez … não …
Quanto às “Trouxas Ensanguentadas”: não foram diluídas pelo tempo, mesmo que efêmeras. Muito pelo contrário, continuam vivas, como “Antígona”, de Sófocles, ou “Os Fuzilamentos do Três de Maio de 1808″, de Goya … a arte … ou a imutabilidade … o homo sapiens é e será sempre o mesmo? … é difícil sair da caverna …como é difícil … “ai, que preguiça”, de Macunaíma (Mário de Andrade).
Como você lida com esse peso de uma atmosfera tão destrutiva e negacionista?
… pensando.
Diante do inesperado, há que analisar o porquê desses inesperados, já que, apesar do mundo das aparências, [é preciso] continuar a surpreender ao afirmar o passado como presente e o presente como lugar nenhum.
Sua produção é marcada por uma perspectiva agudizante e extrema para criar limites, que desenvolvem tensões entre carga ideológica e carga cultural, entre arte e política, entre o medo e o posicionamento, entre a arte nacional e a contextualização artística, entre o tempo e a história. Embora seja um artista de raízes construtivas, inelutavelmente ligado às mudanças sugeridas pelos neoconcretistas e ampliadas pela Nova Objetividade (no contexto da arte brasileira contemporânea), você rompeu com os paradigmas da arte daquele momento (e até hoje), estabelecendo novos sentidos e juízos.
A partir de 1969, você foi reconhecido por produções que chamava de “Situações”, ações processuais e instantâneas, formadas por concepções estéticas e éticas bem definidas. Aquelas instalações, construídas com materiais efêmeros e perecíveis e objetos cotidianos, precários e de baixo custo, despertavam (e ainda despertam) múltiplos significados, numa interligação entre o espaço, o ambiente, os corpos e os espectadores. Num experimentalismo puro, nada estava programado. As obras exploraram o caráter transgressor da arte e, nesse sentido, superaram o conservador das instituições e dos modos de exibição.
Da série “Situações”, uma de suas ações mais simbólicas e perturbadoras foi espalhar as “Trouxas Ensanguentadas” num parque de Belo Horizonte em 1970. A obra singular, dentro de sua pluralidade, evocava os tempos de estado de exceção que vivíamos. O rito do trabalho até a obra final ficou imortalizado pelos registros fílmicos e fotográficos.
[As] T.E. surgem de um desenho feito em 1967 sobre papel pardo, nas dimensões 10 cm x 10 cm, a lápis de carpinteiro, crayon e grafite largo [o desenho ficou com o artista Ivald Granato (1949-2016)]. Mais tarde esse desenho foi colado sobre um pedaço de compensado com as mesmas dimensões. A relação da leitura de “Os Cantos de Maldoror”, do Conde de Lautréamont [escritor francês nascido no Uruguai chamado Isidore Lucien Ducasse (1846-870)], com [a obra] “O Enigma de Isidore Ducasse” [L’enigme d’Isidore Ducasse, 1920, consiste em uma máquina de costura enrolada em um cobertor e amarrada com barbante]“, do [artista americano] Man Ray (1890-1976), criou a possibilidade relacional para fazer as T.E. tridimensionalmente.
Uma reflexão sobre influências/inspiração e suas variantes em torno do princípio, de uma ideia, enquanto história da arte sem a ser. Da origem, enquanto recurso de legitimação da obra, tendo como objetivo primário o distanciamento dessa origem para consequentemente a situar [a obra secundária] como única, pura, absoluta e atual, já que não o é, mas o tenta ser por “apropriação”. Notar que os campos estéticos são opostos. Assim como a postura política: prenhe de ideias antagônicas no que toca à ética e ao gesto criativo artístico. [Origem] distante das linhas de subserviência ao poder contumaz.
Sobre isso acrescento um texto de Arthur du Sel, de 1995:
[em 2019, Artur Barrio começou a escrever sob esse pseudônimo. Os textos nunca foram publicados, a não ser no perfil do artista no FB ou no seu blog pessoal. O despertar ocorreu em 1975, quando viu em Paris a exposição Les Machines Célibataires; desde aquele ano ele vem trabalhando no conteúdo desses textos. Assim, Barrio criou esse personagem para escrever sob duas perspectivas diferentes a partir de um mesmo ponto de partida.]
…“uma circunstância entre outras ou Christo [artista famoso por embrulhar em tecido pontes e palácios, morto em 2020] e Man Ray enquanto influência do segundo sobre o primeiro vivamente negada pelo primeiro em relação ao ‘Mistério’, de Isidore Ducasse, ‘do segundo’….
Man Ray e alguns outros artistas e intelectuais reminiscentes dos movimentos Dadá e Surrealista acusaram Christo de ter copiado/diluído o “O Enigma de Isidore Ducasse“ e o transformado num objeto de consumo, vulgarizando-o, fetichizando-o e, assim, inserindo-o na corrente do sistema, ou seja, todo o contrário vivido proposto pelos artistas e intelectuais desses movimentos. O mais surpreendente foi o contra-ataque de Christo ao afirmar que os embrulhos amarrados que ele fazia na época (1957) foram influenciados/inspirados pela pintura Angelus de Millet [Angelus, 1857-1859, pintura do artista francês Jean-François Millet], a qual evidencia profundamente a relação entre terra, igreja cristã, occupa bit sementem, trabalho, homem, mulher, procriação, ou seja, as obrigações de sempre na agricultura, plantio etc.
Dentro do sistema, o próprio sistema, e não nas bordas ou à margem desse sistema em consequentes intervenções desestruturantes, como o fizeram os componentes dos movimentos Dadá e Surrealista. Compreende-se que, no ‘vazio’ do pós-guerra, necessidade fez-se de o próprio sistema criar uma ‘avant-garde’ para fazer frente a certas ebulições de ordem artística e, assim, surge o Novo Realismo, no qual se inseriu Christo através da perspicácia de Pierre Restany [crítico de arte e filósofo cultural francês (1930-2003)]. Apesar de todos os ataques sofridos, os embrulhos de Christo tiveram um sucesso retumbante como ‘du jamais vu’ em evidente detrimento do ‘Enigma de Isidore Ducasse’, de Man Ray, considerado pela elite da crítica de arte francesa como um artista inclassificável que só depois da inauguração do Beaubourg (Centre Georges Pompidou, Paris, Retrospectiva Marcel Duchamp) teve, anos depois, a sua retrospectiva nesse mesmo local, ainda que obra indizível segundo a imprensa da época, que, entre críticas negativas e positivas, lá foi engolindo o “espinhoso” inclassificável.
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O filho gerou o pai (Artur)
… o que de uma certa maneira procede já que o oficializa, o pai, em detrimento do mesmo, por o não desejar.
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… mas, segundo Arthur du Sel: “A influência não vem do plano espiritual mostrado na tela de Milliet, mas sim do plano terreno situado um pouco atrás do casal, especificamente por trás da figura da mulher em contrição, ou seja, do carrinho de mão. Christo chega a fazer uma brouette idêntica [carrinho de mão/Brouette, obra adquirida pelo MoMA, “Package on Wheelbarrow”, 1963, 89 x 152, 5 x 58, 5 cm] na qual se vê, inserido na caçamba, um único grande ‘saco’ amarrado, não três, o que, devido à sua forma, suscita a questão: encontrar-se-ia no seu interior um corpo (?). Isso, de certa forma, evidencia a continuação de um mistério, ou enigma que seja, e, aí, um ‘clin d’oeil’ [piscada de olhos] inteligente ao seu ‘filho putativo’ Man Ray e à história da arte continuando de uma certa maneira o mistério, o enigma, que tanto o influenciou e com isso fazer frente, ainda que alguns anos depois, à intelligentsia parisiense e sua acusação de que teria copiado, diluído, mercantilizado a obra de Man Ray (O Enigma de Isidore Ducasse). É interessante notar que Man Ray abraça a poesia através de ‘Os Cantos de Maldoror’, do Conde de Lautréamont, enquanto Christo, a pintura com ‘Angelus’, de Jean-François Millet. Texto em continuação…
(Artur). Nisso, insere-se ‘Antígona’, de Sófocles, e 3 de Maio [Os Fuzilamentos do Três de Maio de 1808], de Goya, e evidentemente a ditadura e suas atrocidades. A ditadura militar brasileira começou em 1º de abril de 1964 e durou até 15 de março de 1985, sob comando de sucessivos governos militares, 21 anos!
Em 1969, fiz as primeiras trouxas protótipos e, mais tarde, as das duas ‘Situações’: a de 1969 e a de 1970, nas quais inseri, naquelas duas ‘Situações’, trouxas compostas de carne, ossos, sangue, tecido, cordas, lixo, espuma de borracha, detritos, excrementos etc. Nesses trabalhos – é assim que os denomino, assim como aos demais feitos por mim –, trabalhos em que, geralmente, o título surge a posteriori, nesses trabalhos ou nos demais, não existe nenhuma relação com catarse mágica, catarse dialética ou [qualquer ideia] que possua teor ritualístico, ainda que tenha feito um trabalho denominado Ritual (1970), registrado em Super 8mm, colorido, mudo, 3’.
O que eu chamo de ‘Situações’ em meu trabalho está distante de Situações (Sartre), assim como da Internacional Situacionista [movimento internacional de cunho político e artístico, de 1957, fundado em em Cosio d’Aroscia, Itália]. “A arte ou é revolucionária ou não é nada.” Ainda que haja uma relação em “completar o trabalho dos dadaístas e surrealistas“ – e é nessa parte que insiro o meu trabalho, com a intenção de o afirmar nessa passagem ainda possível antes da escuridão da noite que se aproxima em meio a relâmpagos, salpicos de chuva e redemoinhos de poeira criados pelo vento vindo de onde não há mais árvores, animais, humanos ou o que seja e ali, presencialmente, seca e retorcida, a goiabeira, rodeada por sombras compostas de pensamentos obscuros, emitindo sons que, em seu conjunto, se assemelham a palavras, frases decompostas/compostas formulando pensamentos inócuos, sem sentido, limitados, prenhes de ódio e escárnio a tal ponto que não sabem ou, se sabiam, não o fazem, regar, nutrir com água essa árvore, mas não, não, impregnaram-na com cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina apesar de não serem jardineiros e, por isso mesmo, nada entenderem de jardinagem.
A sua capacidade de reagir, em termos estéticos, comportamentais e ideológicos, às contradições impostas por aquela realidade e de sintetizar os debates em obras de arte provocou no observador reflexões acerca do seu tempo.
Do tempo enquanto tempo de uma forma de reagir ao tempo do outro.
Sobre a participação do espectador ante as Situações. A percepção do observador torna-se quase um aditivo para a obra, como uma referência para a ação, convidando-o à interação com os trabalhos ali expostos no espaço público. A catarse estava lançada!
Sim, claro, pensava que a participação do espectador era importante, mas, com o tempo, reparei e cheguei à conclusão de que o espectador não passa de um estranho pitagórico situado no entorno do acontecimento ou da Situação, mas, caso não haja espectadores ou um que seja, talvez surja algo por parte desse espectador como no trabalho. Minha cabeça está vazia, meus olhos estão cheios. Bienal de São Paulo (1983): um espectador, de idade avançada, o primeiro a entrar no espaço de 200 m², ao se defrontar com o trabalho, silenciosamente, sem nada dizer, destruiu-o aos pontapés! Encerrei ali minha manhã. Fui dormir, tinha trabalhado a noite toda. À tarde, ao acordar, compreendi que tinha criado uma bolha, na qual me havia inserido, como no ‘Jardim das Delícias’, de Hieronymus Bosh. Ali estava eu, confortável, dentro da minha bolha, que, ao espocar, fez sentir-me fenomenalmente forte, com os pés no chão, como se recebesse uma descarga elétrica que propulsionasse os neurônios a funcionar diante do imprevisto/previsível. Ou seja, o mundo das boas ideias, ainda que prenhes de ingenuidade. ‘O espectador faz a obra’ como diria Marcel Duchamp com um piscar de olho em direção ao pensamento pitagórico: no centro, o fenômeno; no entorno, o espectador. A arte como arqueologia, a arte existente há milhares de anos, como na gruta de Lascaux [complexo de cavernas ao sudoeste da França, famoso pelas suas pinturas rupestres], latente e pouco interessada em ser visível ou não pelos basbaques que, após um jantar copioso, em família, vão terminar a digestão passeando pelo museu, entre suspiros, arrotos e puns!
Havia um percurso a seguir e, em outras Situações, não, ainda que sim.
Foi no Salão da Bússola, realizado em 1969 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio, Brasil), que você entrou pela primeira vez no “sistema da arte” e mostrou as suas “Trouxas” com o nome de Situação T/T,1. O evento contou com os jurados Frederico Morais, Mário Schenberg e Walmir Ayala. De acordo com o curador Frederico Morais, em comentário feito na década de 1990, aquela amostra de trabalhos artísticos acabou por lançar a “Geração AI-5”, cujas obras se baseavam na “contra-arte”. Em 1970, ampliou ainda mais a ação na exposição Do Corpo à Terra, em Belo Horizonte.
Vale dizer que Artur Barrio raramente expõe no Brasil. A última mostra individual em Belo Horizonte foi em 2019. No Rio de Janeiro, em 2005. Em São Paulo, em 2017, na galeria Milan, onde participou também de uma exposição virtual, em 2020. Mas tem estado em várias coletivas e algumas individuais na Europa nos últimos anos. Para o futuro, há uma coletiva na Alemanha e uma individual em Portugal, além de outras mostras em conjunto na Europa e nos EUA, “agora que Trump foi embora”.
Não faço trabalhos para essa ou aquela mostra ou instituição, não sigo temas.
O desdobramento do meu trabalho determina o seu processo, processo esse inerente a si mesmo e pelo qual sou convidado, sendo que nunca me interessei por observações ou ideias de curadores, críticos de arte, historiadores de arte, colecionadores, artistas ou grupos de artistas em relação ao meu trabalho. Não apresento propostas aos museus, não faço política para chegar ali ou acolá. Se há interesse por parte do museu, contacte-me, se há interesse por parte do curador, contacte-me.
Você é atraído pelo sentimento de abjeção. Com esta obra, você desperta o sentimento de repulsa (como excrementos, que são tidos como abjetos), causando também um estranhamento no observador. Esse seu difícil posicionamento artístico expressa muito o Brasil daquele momento, uma vez que repele e expulsa aquilo que estava acontecendo, a tortura, a censura, a regressão a ideias reacionárias, como as que circulavam então. Faz-se necessário recordar esse momento da história em resposta à paradoxal nostalgia do autoritarismo, garantindo a lembrança e formando espaços de memória. Se nós tomarmos os “Desastres da Guerra” (Los Desastres de la Guerra, série de mais de 80 gravuras do pintor espanhol) de Goya, nós temos uma crítica à guerra em si. É trans-histórico e cumpre, nesse sentido, a função social da obra de arte. Assim como em “Antígona”, que tem validade universal. “Trouxas Ensanguentadas”, sem perder sua gênese histórica, ultrapassa seu tempo e tem o poder de permanecer: é também universal.
…Quanto à permanência espero que o mundo mude para melhor e as “Trouxas” desapareçam, o que aliás aconteceu em 1969 e 1970. Desapareceram, mas, ainda que celibatárias, permanecem na memória.
Nesse sentido, como você enxerga esse resgate? Como considerar tudo isso tendo em vista o Brasil de hoje?
Não há nem haverá resgate, porque [isso] é impossível no Brasil de hoje, mas, por que se interessariam por uma trouxa, ensanguentada que seja? Ainda por cima, é efêmera em um mundo onde o valor dominante é o dinheiro. Mas…
A série “Trouxas Ensanguentadas” tinha como motor a denúncia da violência e da tortura. Se é verdade que, no inferno, os lugares mais quentes estão reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempos de crise, os artistas de hoje, no caso específico do Brasil, conseguem denunciar a catástrofe que estamos vivendo?
Mais uma catástrofe em meio à tempestade Vida. Afastei-me há alguns anos do convívio com o meio da arte e, consequentemente, com as artistas ou os artistas. Não há conversas, nada, só o silêncio, que, por sinal, me apraz, escuto o meu pensamento.
A criação ainda é o meu maior desejo e, para tanto, o convívio social relacionado à arte, ou seja, o meio da arte, desvia a minha atenção por demais. Isso no meu caso específico, daí o meu distanciamento.
Na esteira da transformação da arte digital com a criptoarte, surge uma linguagem e um novo mercado que levantam questões sobre o fetiche do original, a reprodutibilidade técnica e a indústria cultural inserida na sociedade do espetáculo. Comprar arte em NFT pode ser apenas uma tendência que movimentou o mundo das artes, mas com certeza terá um capítulo na História da Arte.
Qual o futuro da arte?
O fetiche que o capital criou e a burguesia ampliou. [Nesse sentido], o dinheiro é o fetiche, ainda que não seja uma obra única. E a arte passa a ser o meio, onde investir e lucrar mais e mais. Na ‘sociedade do espetáculo’, do país do futuro de hoje, diria que [está] sem futuro [a arte]. Mas espero que essa tecnologia altere o futuro da arte, que pode ser levada a um impasse, a algum lugar sem saída. Alguns escaparão pulando o muro; só que, do outro lado, os esperam o fisco e os agiotas, com seus cães de dentes grosseiramente afiados. Esse futuro denominar-se-á “O Grande Masturbador”, sem nenhuma associação com Salvador Dalí, por favor. Quem viver verá.
Você foi muito corajoso ao fazer T.E. Para você, qual o valor da coragem?
… o amor.

Laura Rago
Laura Rago é curadora e crítica de arte graduada em história e pós-graduada em Jornalismo Cultural e em Arte: Crítica e Curadoria. Trabalhou na Folha de S.Paulo como repórter de arte e música erudita, e foi editora-assistente na revista Bamboo. Colaborou para revistas como Vogue, Harper’s Bazaar e títulos da editora Abril. Atualmente, representa no Brasil o artista plástico argentino Tec e trabalha como curadora de projetos especiais na galeria Choque Cultural.
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