Grafite é arte?
Uma pintura numa caverna é arte? Será arte uma parede recém pintada na sua cidade ou mesmo um desenho gigante feito sobre o asfalto?
Por Laura Rago
Expressar-se sobre superfícies não é uma prática contemporânea. Longe disso. No final de 2019, por exemplo, foram descobertas pinturas de 44 mil anos numa caverna da ilha de Sulawesi, na Indonésia. A série de desenhos retratava cenas de caça, uma realidade cotidiana naquele tempo. São essas as mais antigas pinturas rupestres realizadas pelo Homo sapiens.
Ora, se os desenhos pré-históricos conquistaram seu lugar na história da arte, por que os grafites ainda precisam se impor para alcançar seu espaço na sociedade e no sistema da arte convencional?
MECA DO GRAFITE
As cidades são incubadoras de manifestações artísticas e palco do exercício experimental da liberdade. O grafite, movimento criado por grupos historicamente minorizados e marginalizados, exterioriza a relação orgânica do artista com seu espaço.
Mais que isso, é uma arte que provoca a reação das pessoas porque interfere no seu cotidiano, alterando a sua percepção das ruas, das esquinas, dos becos, das pontes e viadutos, por onde transitam diariamente. Nesse sentido, o morador da cidade se depara com o grafite incluindo-o na sua experiência de viver; trata-se de uma arte que rompe com o estabelecido e usa a paisagem urbana como suporte.
Talvez por esse caráter que lhe é intrínseco, por estar fora do espaço demarcado da arte institucional, seja tantas vezes tratado como ilícito, subversivo ou simplesmente
“não arte”. Ao ocupar o espaço público, o grafite ganha contornos de ação política, ainda que sua mensagem não seja explícita –– ele é contestador em sua essência.
Ainda que toda expressão artística, em alguma medida, sintetize seu próprio tempo, não é a todas dado revelar tão claramente as cisões no campo social. Numa espécie de paradoxo, o grafite abarca a crítica ou mesmo a tentativa de desprestigiá-lo, que lhe confirmam o status de arte transformadora da percepção.
LUGAR DE FALA: CIDADE
A arte, de um modo ou de outro, relaciona-se com o tempo e o lugar em que surge. A arte urbana sobressai a esse conjunto por sua ligação intrínseca com a cidade, cujos espaços lhe são inspiração e plataforma. É arte e é intervenção; é pergunta e é resposta. O artista é criador de algo que não é seu, mas da comunidade, de um objeto artístico de fruição coletiva – necessariamente.
Daí o sentimento de pertença que a arte de rua desperta nos espaços em que se instala. Seu aspecto efêmero, jamais negado, desde sua própria linguagem (grafite, instalações, murais, projeções) reforça a ideia de participação ativa do morador da cidade, que, mais que um apreciador de obras de arte ou um ávido consumidor de objetos, está ali representado.
ARTE PÚBLICA: GRAFITE
A matriz comum do grafite é a linguagem urbana e o diálogo com o espaço público. Desde os anos 1970, há um debate sobre o deslocamento do grafite para museus e galerias, que se posicionaram para recebê-los. Tal processo, inerente ao mercado da arte, resultou na “legitimação” dessa manifestação artística, que estava pronta para dialogar com a arte contemporânea mais formal, a das bienais, dos museus e das feiras de arte.
O grafite, sobretudo o brasileiro, foi, durante muito tempo, associado ao pixo, portanto ao vandalismo. Nesse sentido, foi importante ter recebido um impulso do mainstream a fim de sair da margem – e mesmo da ilegalidade – e ganhar projeção no mercado de arte internacional e nacional. Artistas como Alex Vallaury (1949-1987), OsGêmeos, Nunca, Banksy, Jean-Michel Basquiat (1960-1988), Tec, Alexandre Orión, Blu, Space Invader, keith Haring (1958-1990), entre outros, conseguiram romper a resistência tanto de curadores como de críticos de arte.
AUTORIZADO E NÃO AUTORIZADO
A função da arte pública é criar um canal de comunicação com a população, propondo caminhos de reflexão e discussão. Nesse sentido, os monumentos, por exemplo, construídos com autonomia estética, pouco se diferenciam de obras que poderiam estar em museus. Não se chocam com as regras institucionais e sociais de uma cidade, não suscitam questionamento; em geral, reforçam valores e, sobretudo, uma ordem preestabelecida.
O grafite e as grandes empenas cegas – paredes laterais dos edifícios – impõe uma postura crítica de tensionamento do espaço público, seja na comunidade, seja no fluxo de pedestres e de carros, seja na escala do suporte.
Segundo a lei 9.605, dos Crimes Ambientais, não constitui crime a prática de grafite “realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística”. O texto estabelece, porém, que o artista respeite alguns requisitos.
CONFUSÃO ESTÉTICA E TÉCNICA
Quem digitar “pichação” no Google encontrará o seguinte resultado: “Pichação é arte?”
Um elemento fundamental no pixo são os códigos estéticos que criam um enigma com as letras, compondo um alfabeto próprio. O estilo que pode ser conhecido como uma assinatura, sendo utilizado para diferenciar grupos de pichadores ou o pichador, é caracterizado por letras retas e alongadas, que, muitas vezes, marcam território. Esse tipo de manifestação é feito de forma ilegal nos lugares mais altos da cidade (e muitos ainda põem a vida em risco em nome do pixo). Já o grafite é tradicionalmente conhecido pelas letras bomb, letras gordas e coloridas, e feito com tinta spray. Hoje existem muitas variantes desse movimento genuíno de leitura do contemporâneo, que deu nome para diferentes técnicas e linguagens e que emerge para conquistar seu lugar na história da arte.
E A PERGUNTA QUE NÃO QUER CALAR
Quando uma produção ganha status de obra de arte? Que ninguém se engane: fórmulas engessadas e modelos conservadores ainda ditam as regras do jogo no sistema da arte, legitimando e validando uma produção e seu autor.
A arte contemporânea tem o deve de criar possibilidades e alternativas para interferir nesse jogo, que é um desafio a enfrentar – pelo menos para os artistas que não se sintam imediatamente reconhecidos nas regras de inserção no circuito. Não existe no sistema da arte nenhuma posição neutra: sempre haverá matrizes conceituais e ideológicas. Resta, como nos demais campos da vida social, explicitar as tensões e posicionar-se.
Continue lendo mais em: Grafite é arte? Duas entrevistas por Laura Rago

Jc Ruzza
Março 28, 2020at10:38 pmMassa o seu texto Laur., É legal ver o Grafite firme e forte e, pra quem acompanha lá desde a época do Vallaury, sua impressionante evolução técnica e estética, que mostra uma linguagem que nunca dá sinais de esgotamento e ainda mantém estas tensões as quais você se refere vivas.
Valeu.
Pingback:Como fica a arte urbana se os artistas de rua estão em casa? – Bigorna Art
Abril 25, 2020at11:34 am