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Toda arte é política?

Toda arte é política?

 

Em tempos de estado de exceção e pandemia, a arte manifesta diferentes matrizes conceituais e ideológicas, refletindo também as urgências e agendas vitais do presente

 

Por Laura Rago

 

A questão se toda arte é ou não política divide opiniões no território das artes e da cultura. Não se pode negar, no entanto, que, mesmo indiretamente, a arte, como expressão humana, não poderia estar desvinculada do lugar político do artista.

 

Mesmo que esteja voltado à pesquisa estética ou ao experimentalismo, dando vazão à própria autonomia criativa, o artista está em permanente diálogo com o real, que é a matéria-prima da imaginação. Por mais que a subjetividade ou o viés psicológico impregnem o trabalho artístico, ele sempre será uma resposta às questões de seu tempo e, nesse sentido, será político.

 

É fato que a arte, portanto, ultrapassa os reducionismos e insere mensagens e ações críticas e reflexivas em sintonia com seu contexto histórico.

 

Períodos de crise tendem a convocar o artista ao engajamento nas questões políticas. O fato de desenvolver algum tipo de pesquisa formal que se volte a um diálogo com outras experiências estéticas não o exime de usar sua linguagem para exprimir preocupação crítica. É, por certo, da junção da inquietação particular do artista com a sensibilidade ante a realidade que resultam os trabalhos mais expressivos.

Na foto acima, vista da exposição “Véxoa: Nós Sabemos”,
em cartaz na Pinacoteca de São Paulo (Foto: Levi Fanan)

RELAÇÃO DE AMOR E ÓDIO

 

A arte e a política sempre estiveram articuladas. A relação entre essas duas atividades humanas, no decorrer da história, desenvolveu-se em dois sentidos: ora ações artísticas se assumem políticas, ora práticas políticas encontram suporte na estética.

 

No conjunto do que se pode chamar de arte política, em sentido estrito, estão obras de alta voltagem política que não perdem sua dimensão poética, obras panfletárias e engajadas, obras explícitas, escancaradas e imediatas, obras marginais que se valem de alegorias e metáforas, “arte de guerrilha” e “contra-arte”.

 

A capacidade desses artistas de reagir, em termos estéticos, comportamentais e ideológicos, às contradições impostas pela realidade e de sintetizar os debates contemporâneos em obras de arte provoca no observador reflexões acerca do seu tempo e indica futuros desdobramentos socioculturais. E desse caldeirão surgem obras que fazem referência a esse momento, como poderemos ver abaixo.

 

Neste momento da história do Brasil, em que à intensificação do discurso do ódio, à  legitimação da mentira, na forma de fake News, e à precarização das formas de trabalho se junta o retorno crescente da violação dos direitos e da restrição de liberdade é preciso também revisitar a produção artística do passado como uma maneira de fazer pontes com o presente.

As pinturas de bananas dilaceradas de Antonio Henrique Amaral 

AGLOMERAÇÃO

 

Em “Campos de Batalha”, série de 34 obras de Antonio Henrique Amaral (1935-2015) feita na década de 1970, bananas são submetidas a cortes, dilacerações, enforcamento. O elemento tropical e símbolo de uma economia subdesenvolvida ganha protagonismo na produção do artista como alegoria dos tempos da repressão política e opressora no Brasil. Parte da extensa produção do artista é revisitada em “Aglomeração Antonio Henrique Amaral”, no Instituto Tomie Ohtake. Integram a mostra artistas contemporâneos, como Ana Elisa Egreja, Raquel Nava e Igi Lola Ayedun, que foram convidados a criar obras instigadas pelo contato com a produção de Antonio Henrique. A exposição-processo, que teve início em formato virtual, com posts semanais no Instagram da instituição e divulgação no site, ocupará o espaço físico do lugar em breve.

Obra do Bansky postada no Instagram

FOGO NA BANDEIRA

 

Em junho deste ano, o artista Banksy (@banksy) pintou a bandeira dos Estados Unidos em chamas em tributo a George Floyd, homem negro brutalmente assassinado pela polícia em Minneapolis. Poucos dias depois, após derrubada da estátua de um comerciante de escravos do século 17, em manifestações antirracistas ocorrida na cidade de Bristol, da qual participaram integrantes do movimento “Vidas Negras Importam”, propôs nova versão da obra. Na sua conta no Instagram, o artista fez a seguinte proposta: recolocar a estátua de Edward Colston no pedestal, amarrar cabos ao redor de seu pescoço e acrescentar outras estátuas de bronze de tamanho real dos manifestantes no ato de puxá-lo para baixo. “Todos felizes. Um dia famoso para ser relembrado.”

 

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“Freedom Kick: Brazil”, do coletivo Indecline

PELADA DE PRESIDENTES

 

O coletivo americano de arte de rua Indecline e o artista plástico espanhol Eugenio Merino criaram o “Freedom Kick”, ou chute da liberdade, ação que promove partidas de futebol amador nas quais as bolas são réplicas de silicone de cabeças de líderes que o grupo considera ditadores. Donald Trump e Vladimir Putin já entraram em campo. Recentemente, foi a vez de Bolsonaro participar da pelada. A série de vídeos usa o futebol como metáfora da performance de protesto pela sua importância no imaginário social.

CARREATA EM MARCHA A RÉ 

 

A trilha sonora da performance-filme de Nuno Ramos e do Teatro da Vertigem (@teatrodavertigem_), realizada no início de agosto, é de dar frio na espinha. Os artistas criaram uma sinfonia com o som dos respiradores mecânicos utilizados nas unidades de tratamento da Covid-19. O barulho saiu das caixas de som de cerca de cem carros, que, com suas janelas abertas, percorreram em marcha a ré o trajeto que vai do prédio da Fiesp, na avenida Paulista, até o cemitério da Consolação, em São Paulo. Dois carros funerários ficaram à frente do comboio. O cortejo fúnebre presta homenagem aos mortos por coronavírus e denuncia a ação (ou inação) do governo brasileiro atual como um todo. A performance foi filmada pelo cineasta Eryk Rocha e transformada num curta-metragem exibido na 11a Bienal de Berlim.

 

Leia mais: Como ficam as bienalis no pós-pandemia?

 

Performance “O Sacudimento da Maison des Esclaves” (2015), da série “Sacudimentos”,
de Ayrson Heráclito,

CURA DO PASSADO

 

O trabalho do artista baiano Ayrson Heráclito se debruça sobre questões da cultura afro-brasileira e do universo do candomblé, incorporando em suas obras narrativas de cunho místico-religioso e debates sobre escravidão e racismos sob a perspectiva decolonial. Na exposição virtual, dez obras audiovisuais criadas pelo artista entre 2004 e 2018 e um vídeo inédito intitulado “Sacudimentos”, que dá nome à mostra, podem ser vistos na nova plataforma da associação VideoBrasil Online. As composições poético-reflexivas jogam luz sobre a urgência de se olhar para o passado colonial e reivindicam posturas pós-coloniais para os problemas que afligem o mundo contemporâneo.

Bananeiras: Facão”, de 2017, de Gustavo Caboco
Pintura de Jaider Esbell na mostra individual TransMakunaíma

BRASIL TERRA INDÍGENA

 

Denilson Baniwa, natural da aldeia Darí, em Barcelos, no Amazonas, Jaider Esbell, da etnia Macuxi, em Roraima, Gustavo Caboco, de Curitiba, filho de uma Wapichana, e Arissana Pataxó, da Aldeia Coroa Vermelha, localizada na Bahia, são alguns dos nomes da arte indígena brasileira atual. “Indigenizar” a noção da arte e levantar discussões acerca da preservação da memória, do meio ambiente e do patrimônio cultural e humano, são denominadores comuns nos processos de produção desses artistas. Para saber mais sobre arte indígena contemporânea, Jaider Esbell, um dos artistas participantes da 34ª Bienal de São Paulo, adiada para 2021, oferece curso online no MAM até 25 de novembro.

 

Em tempo: Pela primeira vez na história da Pinacoteca, o museu realiza uma mostra dedicada à produção indígena contemporânea. A coletiva “Véxoa: Nós sabemos” reúne obras de 23 artistas indígenas contemporâneos e tem curadoria da pesquisadora indígena Naine Terena. Entre as artistas e os artistas estão Jaider Esbell, Denilson Baniwa, Coletivo Huni kui Mahku, Tamikuã Txihi e Yakunã Tuxá. Outros nomes importantes podem ser vistos na exposição; destaque para as obras de Ailton Krenak, líder indígena e escritor. 

Laura Rago

Laura Rago é curadora e crítica de arte graduada em história e pós-graduada em Jornalismo Cultural e em Arte: Crítica e Curadoria. Trabalhou na Folha de S.Paulo como repórter de arte e música erudita, e foi editora-assistente na revista Bamboo. Colaborou para revistas como Vogue, Harper’s Bazaar e títulos da editora Abril. Atualmente, representa no Brasil o artista plástico argentino Tec e trabalha como curadora de projetos especiais na galeria Choque Cultural.

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