Uma obra falsificada pode ser chamada de arte?
Alguns falsificadores deixam de ser criminosos e viram famosos
Você chega numa exposição em que o título já mostra que tudo o que você irá ver é cópia. Mas, ao mesmo tempo, você passeia pela exposição de um dos maiores falsificadores do século 20, e acha tudo lindo. A dúvida é: aquelas pinturas bem feitas podem ou não podem ser elogiadas? Afinal, esse artista-falsificador está cometendo um crime! Isso se ele puder ser chamado de artista…

Piet Mondrian, “Portrait of a Polish Women”, de 1919
INVENTANDO PERSONAS
É incrível pensar que o húngaro Elmyr de Hory (1906-1976) passou de criminoso a famoso. No final da sua vida, ele ganhou uma biografia “Fake! The Story of Elmyr De Hory, the Greatest Art Forger of Our Time” (1969), de Clifford Irving, e Orson Wells contou sua história no filme “F for Fake” (1974). Décadas depois, suas obras foram expostas em museus como o Círculo de Belas Artes em Madri, e o Hillstrom Museum of Art, perto de Minnesota, nos Estados Unidos, onde ele tem a individual “The Secret World of Art Forger Elmyr de Hory: His Portraiture on Ibiza”até abril de 2020. Tudo isso por conta de ter copiado mais de 1000 obras de arte de pintores mundialmente famosos como Picasso, Modigliani ou Degas, e ter assinado como se fosse eles. Em Miami, por exemplo, “um de Hory” ficou exposto por anos como “um Modigliani”.
Durante sua vida, ele não conseguia vender nada autoral. Mas, quando fazia essas cópias, ganhava o confete que tanto almejava. Nos Estados Unidos, ele fingiu ser um aristocrata em decadência, que precisava vender suas obras valiosas no final da Segunda Guerra Mundial. Depois de ser muito procurado pelas autoridades, ele se mudou para a Espanha, onde pôde adotar uma nova persona: um falsificador inteligente que conseguiu enganar o mercado da arte. Essa memória se perpetuou graças a um colecionador, o Mr. Forgy, que herdou 300 obras do falsificador, depois dele cometer suicídio em 1976. Em 2012, Mr. Forgy escreveu um livro sobre de Hory, que depois ele adaptou para uma peça. Talvez o Mr. Forgy estivesse querendo aumentar a popularidade do falecido amigo para, consequentemente, aumentar o valor da sua própria coleção.
CONTINUA SENDO UM ARTISTA
A história é fascinante e mesmo digna de filme ou livro. Outro falsificador, o alemão Wolfgang Beltracchi também ganhou um documentário e ficou famoso por ser um criminoso da arte. “Beltracchi – a arte da falsificação” (2014) debate o valor da obra desse artista: por um lado, sua habilidade na pintura é inquestionável. Por outro, a ideia original não é dele. Na arte contemporânea, se o que conta é a ideia e o conceito da obra, e não necessariamente a sua execução formal, então a obra de Beltracchi é questionável. Isso não quer dizer que Beltracchi não seja artista. Mas pode significar falta de criatividade, empenho e pensamento crítico – alguns adjetivos que considero primordiais para considerar que um artista é, para mim, um bom artista.
ELE CRITICA A ORIGINALIDADE DA OBRA?
Andy Warhol (1928-1987) e Robert Rauschenberg (1925-2008) passaram a vida criticando a ideia da originalidade na obra de arte. Quando os americanos fizeram as primeiras serigrafias – técnica que permite transferir imagens para peças e reproduzi-las quantas vezes quiser – os artistas manifestavam a ideia de que não era apenas uma pintura ou uma escultura que merecia valor. Mas uma fotografia e outras obras de arte facilmente reprodutíveis também deveria ser reconhecidas como obras de arte.
Diferentemente deles, artistas-falsificadores não tem apreço pela ideia. Além disso, eles não assinam seus nomes, mas passam pela identidade de outros. Nesse sentido, não podemos afirmar que eles estejam questionando a originalidade de uma obra, como fizeram grandes artistas contemporâneos. Por outro lado, eles contribuem para a discussão latente no mercado de arte referente à etiqueta: depois de cair a máscara sobre sua real identidade, passa-se a encarar o fato de que, em muitos casos, o valor da obra aumenta (e muito) por conta de quem a fez, e não pelo seu valor artístico.
EU COPIEI UM MONDRIAN NA ESCOLA!
Reproduzir obras de outras artistas é uma prática básica nas escolas de arte. Copiar o pontilhismo de Seurat ou os quadrados coloridos do Mondrian são tarefas comuns para quem estuda arte. Nesses casos, as propostas é repetir os movimentos e cores para entender caminhos tomados por grandes artistas e o processo de produção daquelas obras. Quem nunca reconheceu pinturas com traços muito semelhantes a mestres do modernismo em feiras de rua, na casa da avó ou decorando um restaurante? Se seu autor não quiser passar por um Picasso, está tudo bem.
COMO SE DESCOBRE SE A OBRA É OU NÃO ORIGINAL?
Casos polêmicos de falsificação acontecem o tempo todo, porém com cada vez menos frequência. Isso porque, na arte contemporânea, toda obra adquirida vem com um certificado de autenticidade, um R.G. que garante que aquela obra foi feita por determinado artista, naquela data e utilizando tais materiais. Catálogos raisonnés também têm um importante papel, principalmente no que concerne artistas mortos: são inventários que procuram catalogar todas as obras de um artista. No Brasil, catálogos raisonnés de artistas como Portinari (2004) e Volpi (2015) foram bem importantes para impedir que falsificações continuam sendo vendidas por aí.
Os especialistas acabam sendo os mais requisitados para identificar uma falsificação. Eles procuram nas pinceladas, no tipo de tinta, na moldura e em outros materiais utilizados qualquer indicação de que aquilo não é original e nem feito na época em que o artista viveu. São olhares treinados que têm grande credibilidade no mercado. Processo mais complexo é a espectroscopia de infravermelho, em que dá para identificar cada camada de tinta, verniz e pigmentos.
Gustavo
Junho 4, 2020at1:36 amÉ impressionante a qualidade dessas matérias, que transmitem tanta informação com pouco espaço. Adoro como sempre são abordadas todas as questões dos assuntos tratados. Parabéns.