Expedição Artística: o Festival Walk&talk te leva a conhecer os Açores e dialogar com o mundo
Andar (muito) e falar (mais ainda) são os preceitos do festival de paisagem acachapante
A ilha de São Miguel está no meio do Atlântico. É a maior das nove ilhas do arquipélago dos Açores e tem uma formação rochosa bem peculiar, já que está em cima de vulcões – adormecidos, porém ativos. Os milhares de quilômetros de distância do continente e a paisagem de filmes fabulosos são alvo perfeito para artistas que procuram isolamento, inspiração e pesquisa. Todo mês de julho, não apenas um ou dois, mas dezenas de artistas viajam para lá e transformam o que seria uma experiência isolada numa residência artística efervescente. Eles saem de São Miguel amortecidos pela beleza e com um número sem fim de novos conhecidos que vão dos pescadores aos professores locais, dos jovens habitantes aos velhotes patriotas, de artistas de todo o mundo a alguns dos melhores curadores de Portugal. Andar e falar: esse é o lema (e o título) do festival Walk&Talk.
RESIDÊNCIA GENEROSA
Entre o dia 5 e até 20 de julho de 2019, aconteceu a 9ª edição do Walk&Talk, cujo pavilhão principal fica na capital de São Miguel, chamada Ponta Delgada. Ele foi criado por Jesse James (@jesse_james) quando tinha apenas 22 anos (pasme!) e é dirigido também por Sofia Carolina Botelho (@sofiapbotelho) – a generosidade e sensibilidade da dupla contamina tudo e todos. As oitenta pessoas que participam do festival, entre artistas, curadores, jornalistas e profissionais da arte são convidados a integrar uma programação que compreende visitar algumas exposições, assistir a muitas performances e conhecer (ou fazer uma imersão) na ilha por meio de expedições temáticas e em grupo. Foram precisos alguns dias para eu entender que a residência artística em si – ou seja, a pesquisa, o conhecimento e o diálogo – é mais importante para o evento do que a apresentação de obras. Funciona assim: sete artistas (sendo uma dupla), foram selecionados pelo curador Sérgio Fazenda Rodrigues (@sergiofazendarodrigues) para viajar aos Açores no ano passado, durante a 8ª edição do festival. Depois de estudarem a cultura, história, geografia, geologia e tudo o que mais o arquipélago pode oferecer (alguns deles viajaram para outras ilhas como Terceira, Faial, Flores e Pico), eles voltaram para suas casas para colocar a mão na massa e produzir um trabalho. Outros ainda visitaram os Açores mais uma vez, durante o inverno, onde puderam dar aulas nas escolas locais, gravar imagens e pesquisar in loco. Aí, depois de um ano de trabalho, eles apresentaram suas obras na edição vigente do Walk&Talk.
VALE TUDO!
É claro que uma imersão dessas aliada ao fato de não terem que produzir e apresentar uma obra num curto período de tempo (o que acontece na maioria das residências) faz com que os artistas tenham total liberdade de experimentação. Eles podem, também, produzir obras de qualquer linguagem: tanto uma escultura site-specific como um vídeo, uma série de fotos ou algo mais efêmero, tipo uma performance. Só uma coisa é pré-requisito: que eles produzam a partir do que pesquisaram na ilha. Ou seja, a partir do seu olhar estrangeiro, de artistas-observadores, eles constroem trabalhos que trazem novas leituras sobre o próprio arquipélago. Isto é um ganho para todos: conversei com diversos locais que disseram animadamente como é interessante ver sua terra sob uma nova perspectiva. Eles adoram!
VULCÕES E CAMADAS DE HISTÓRIA
As sete exposições individuais curadas por Sérgio Fazenda Rodrigues estão espalhadas por Ponta Delgada: um centro comercial, uma torre, uma igreja, um contêiner, uma piscina e dois museus. No último andar do centro comercial, uma piscina azul desativada foi pintada de branco pela portuguesa Andreia Santana (@andreiaapsantana). No fundo, estão esculturas que remontam uma técnica usada na arqueologia para unificar achados em escavações. A ideia veio de uma visita a um parque arqueológico subaquático, onde ela conversou com vários profissionais envolvidos. A piscina também é uma escavação, um buraco na terra: ela faz alusão aos vários vulcões e crateras embaixo do solo dos Açores e as camadas de terra e história que estão escondidas. Em Strata, porém, tudo está à vista.
HOTEL-FANTASMA
Mónica de Miranda (@monicademiranda_studio) escolheu estudar o Hotel Monte Palace, que já foi tema de diversos trabalhos de arte ou documentais. A história é realmente boa: o hotel de luxo foi inaugurado em 1989, com 88 quartos, dois restaurantes, balada, bar, café e uma vista deslumbrante para a Lagoa das Sete Cidades. Mas, era quase um hotel-fantasma, já que ninguém pagava para ficar ali (há quem diga que a falta de chamariz era culpa de um plano malsucedido de um cassino). Um ano depois, o hotel faliu e foi totalmente saqueado. Hoje, ele é um hotel-fantasma e cenário pronto para vídeos como In(sul)ar, de Mónica de Miranda. No vídeo, ela anda pelo prédio enquanto um coral canta lindamente. A obra dialoga com a arquitetura do espaço e comenta sobre a ruína e a natureza. Sendo negra e de raiz angolana, a artista parece falar sobre a tentativa de organização, poder e imponência do império português nas colônias, que quiseram explorar a exuberante natureza e impor suas regras numa cultura já existente. Mas, mal sabiam eles, que a natureza se rebela!
PRESENÇA DE PALCO
As performances eram sem dúvidas mais diferentes e impactantes. Na abertura do festival, o Teatro Micaelense (o principal da cidade) recebeu a performance At the still point of the turning world, em que imagens da ilha feitas pelo cineasta Miguel C. Tavares (@miguelc.tavares) foram apresentadas com orquestra ao vivo e música eletrônica, numa combinação de sons e imagens que eu nunca havia visto. A colaboração com Joana Gama (@joanamcgama), Luís Fernandes e José Alberto Gomes (@jasgomes)produziu o que seria uma fábula contemporânea ou remetendo aos filmes épicos.
A carismática Rita GT (@ritagt) chamou algumas das mulheres locais para participarem de uma procissão pela cidade. Vestidas com capas pretas e segurando antigos vasos de cerâmica usados para carregar água, elas nos levaram pelas ruas de Ponta Delgada até uma capela. Provocando a inversão de papeis – afinal, quem participa de procissões religiosas historicamente são apenas homens – Rita enalteceu a produção artesanal local de cerâmica, o trabalho e o empoderamento feminino. Mais tarde, encontrei-as todas numa rodada de cerveja (ali chamadas de finos) e se divertindo com a ideia de “terem se sentindo mesmo artistas!”.
Entenda: O que é performance?
MERECEMOS UM BRINDE!
É claro que tudo terminava em festa. Seja lá para onde fossem, todos os presentes se encontravam ao final da noite no pavilhão W&T, cuja arquitetura contemporânea e luzes esverdeadas chamavam atenção de qualquer presente. Se juntavam ali os jovens moradores que aproveitam a oportunidade para conhecer novas caras, o público mais velho na saída do show de Caetano Veloso (sério, ele foi parar lá!) e os voluntários adolescentes que eram pau pra toda obra do festival. Durante a minha estadia lá, a performance noturna mais marcante foi do Colin Self (@colinself), americano que vive em Berlim e quem eu quase não reconheci quando apareceu de peruca loira, maquiagem e uma roupa colada de corpo inteiro. A apresentação provocadora e de temática queer fez todos o público dançar com sorriso escrachado no rosto. A felicidade não era pouca: afinal, esse era só o segundo dia do festival!
Não tem nenhum comentário